sábado, 8 de janeiro de 2011

"DESTINO E MORTE DAS PALAVRAS EM VERGÍLIO FERREIRA", por Isabel Rosete

«Mas como dizer aquilo mesmo que julgamos dizer, o que em palavras comuns enunciamos? (...) Como dizer "morte" à superfície deste vocábulo "morte"? (...) Mas o mesmo vocábulo esgotou sem esgotar toda a rede infinita que o prende. Escrevo a palavra «morte» e como admitir que nela tenha esgotado a perturbação que me toma, até porque nem sempre me toma? Escrevo a palavra "luz" e como conceber que ela ilumina toda a minha alegria para que outrem ou eu próprio a reconheça?.»
Vergílio Ferreira

«Quando falamos neste homem de Melo, de ar calmo e absolutamente sereno, olhando para o mundo ao mesmo tempo que olha para o interior de si mesmo, não podemos deixar de o conceber como uma excepção. No seio da literatura portuguesa assumiu a difícil e ingrata vocação de denunciar a morte da palavra, da arte do homem no pensamento contemporâneo.
Remou contra a maré como os profetas e a sua voz isolada, apesar do anúncio primeiro da morte de Deus e depois da morte do Homem, não se cansou, porém, de afirmar o valor do homem e a grandeza das suas manifestações, mas também de valorizar a dúvida, que o tornou particularmente incomodo no meio da intelectualidade portuguesa.
É neste contexto, que devemos entender a imagem a que o escritor recorreu, aquando da entrega do Prémio APE, em 1998: «Escrevi algures que numa carroça quem tem menos problemas é o cavalo. Mas precisamente por isso foi a sorte do cavalo que normalmente e no fundo o homem para si pretendeu. Alguém que tome conta de nós, alguém, alguma coisa, que tome sobre si o que é o peso do nosso excesso».
De resto, o que evocará Vergílio Ferreira que não esteja já na profunda admiração pela sua obra? A sua vida pertenceu-lhe inteira em cada livro. A sua vida (e também a sua morte) está toda, inteira, na sua obra.
Digamos que o autor escreveu uma única e grande obra que atravessa todos os seus livros, pelo que entenderemos todos os sinais que deixou em cada um deles como um lamento por um mundo que desaparecia lentamente, e por uma relação perdida entre os homens e a felicidade.
Este homem sombrio que às vezes escrevia com acentos graves de pitonisa que nos anuncia catástrofes inconcebíveis, este perscrutador de mistérios e negrumes, nunca foi capaz de aceitar pacificamente esta verdade tão simples: que só a força intrínseca da sua obra, a um tempo, fremente e sólida, o podia salvar.
Ora, aquela “inverossimilhança” que o autor de "Aparição" atribuiu à morte cobra, de facto, um outro sentido. Tudo na sua luz se transfigura: a voz do amigo desaparecido, os seus gestos, o rosto que nos serve de espelho de uma vida, e até os seus textos que foram a sua verdadeira vida e com ela se confundiam.
Textos sempre ligados ao sonho e à paixão que os criou, coligidos com uma espécie de solidão de ninguém, como a das estrelas. Em última análise, pensamos, é assim que muitos autores o imaginam e poucos os terão transposto para esse espaço invulnerável onde o rumor da vida e das feridas que dela supuram já não se ouvem ou não sangram, como na alma deste escritor que nos ficou «para sempre».
Vergílio Ferreira quis, menos do que se defender do que se abrigar de tudo e de si mesmo, confundir-se com a voz da solidão, que cedo o habitou com um excesso, que nem a obra toda glosando-a com uma obsessão intensa, pôs cobro. «Só» é uma pequena grande palavra que caracteriza toda a sua vida e toda a sua obra, quiçá a vida e as obras de todos os seres humanos. «Só», o mais curto dos nomes, que deu à radical vivência da condição humana, como ele a sentiu e viveu, o mesmo brasão do amor fraterno.
Sentimos em cada acto da escrita vergiliana um ostensivo culto da tristeza, qual incansável reiteração da evidência das evidências, co-essencial à nossa existência como finitude. E em torno desse «lugar-comum» ergueu uma elegia fulgurante, quiçá narcisista, ou se preferirmos, complacente música sobre a sua finitude, a sua morte e não sobre a intrínseca e anónima mortalidade, como defenderia Beckett.
Sobre toda a obra vergiliana encontramos o fantasma da própria morte do escritor, tal como Rilke o invocou. E por esta via, está naturalmente presente, suportando sobre a sua realidade da sombra, o peso e o esplendor do que chamamos mundo e vida.
Se enveredarmos por outra postura hermenêutica, talvez seja uma injustiça, encerrar a sua temática da solidão metafísica do homem, no mero círculo da subjectividade. Em termos de ficção, a Morte comparece, desde as suas primeiras palavras, como o acontecimento empírico, de espécie única, que realmente é.
Se retirarmos o fantasma da morte do nossos horizonte, não há ficção, pois toda a ficção não é senão o resultado dessa necessidade intrínseca de contornar o problema, de integrar simbolicamente a morte na realidade que ela subverte pela sua irrupção. Ora essa morte foi durante muito tempo, nos romances de Vergílio Ferreira, a morte dos próximos: do Pai e da Mãe.
Nelas, o narrador – sempre o duplo do autor – descobre e é posto em presença da forma sensível da ausência pura – aquela que faz parte de nós – restabelecendo-o na sua “hora zero”, obrigado a inventar-se neste mundo onde tudo perde, de súbito, significação e realidade. Não é, por isso, Vergílio Ferreira que descobre a solidão, mas a solidão que o descobre. E “para sempre”. Em derredor do que já não é, do que não “existe”, como o autor escreveria, deve inventar, ser, “ser-se”, mais precisamente.
Começou a sua luta pessoal em volta do Anjo que, como para Malraux, terá o rosto da ausência ofuscante a que chamamos Morte. Combate sem fim que supõe um cavaleiro imortal, um Eu que não tem outra essência da presença de cada um a si mesmo, aquilo a que chamamos Vida – a nossa vida.
Eis a grande novidade/inovação temática da escrita vergiliana: vida que nos entretece «nos limites necessários do seu entretecer-se, sem aquém , nem para lá». «Mas a nossa vida é “a” vida», que se acelerou até à vertigem, embora o corpo retardador nos atropela a ordem e a sucessão. A vida que «está cheia do milagre vertiginoso. Tão cheia, que a tua capacidade de espanto se pode executar diante de um simples verme. Porque olhas um verme sem estremeceres?» .
A literatura contemporânea de Vergílio Ferreira, não se alimentava de preocupações ou obsessões deste género, informa-nos Eduardo Lourenço, num texto escrito em Coimbra, em 8 de Março de 1996. A sociedade com os seus conflitos sociais, a História com os seus dramas, a vida individual com o labirinto das suas ambições e paixões, eram o vasto campo da transposição romanesca.
Os temas dominantes dos romancistas seus contemporâneos – principalmente aqueles amplamente explorados por José Régio – não deixam de estar presentes na obra de Vergílio Ferreira, obsessivamente atento às peripécias do mundo, ao desenrolar do destino do mundo, ou à procura por um sentido da História e da Vida, cada vez mais improvável.
Como diria Kierkegaard, filósofo a que o escritor tantas vezes se refere nos seus ensaios, todos estes temas serão sempre os arredores de uma «única questão»: restaurar e reiterar sem cansaço a evidência das evidências, a de um Eu, ao mesmo tempo contingente, porque “produto” de uma cadeia de causas em cada momento da nossa genealogia, improváveis, e absoluto na sua pura presença em volta do qual se organiza aquilo que para nós é o que nos existe, como fonte de exaltação ou de frustração.
É claro que desde Aparição, que Vergílio Ferreira se instalou na figura de “mensageiro” desta revelação, conquistando o seu lugar como voz epifânica, a única que permite distinguir a vida como existência sonâmbula ou in-autêntica, e a existência acordada ou existência autêntica, sem, contudo, que ninguém esteja certo de viver a sua vida como ideal de vigília: os próprios Apóstolos, sempre atentos a todos os passos de Cristo, também adormeceram na hora solitária do Mestre.
Mesmo que digamos que foi a sua vocação naturalmente poética, os seus dons de lírico ou a sua vocação para a mitificação das ideias e da mais banal experiência quotidiana, que tornaram Vergílio Ferreira romancista, não poderemos obnubilar que a sua obra é a encenação de uma única história e essa história é a lenta emergência, depurada de livro em livro, do eterno conto de “amor e morte”, tão similar ao de Tristão e Isolda.
O que foi vivido pelo autor, trás a marca de uma elaboração estética profundamente exigente, através da qual acabou por instalar no lugar da solidão original, o Anjo da solidão que o consolou de tudo e o assistiu na hora impensável da sua própria morte, o Anjo que, sem embargo, é sempre do domínio do terrível .
O autor de "Para Sempre" (1983), de "Até ao Fim" (1987), de "Em Nome da Terra" (1990), e de "Na Tua Face" (1993) ou do final, quase póstumo, de "Cartas a Sandra" (1996), está a iniciar o caminho do regresso, querendo, no entanto, «perseguir até ao fim achar o mar» . É por isso que estes livros se nos afiguram com uma força inaudita, desmedida, e-norme, face à nossa tão notável pequenez.
O autor que sempre lutou contra a inevitabilidade da morte, adivinha a sua morte física, mas assume-a com serenidade. Sem dúvida que também com relutância, com o desejo de a adiar por mais algum tempo. No entanto, sabe que a não poderá adiar: é um estádio que se instaura de acordo com um regulamento invisível, cósmico, inexorável.
E, naturalmente, uma interrogação simples, mas profunda: o que é que a obra de Vergílio Ferreira significa para nós, hoje (perguntamo-lo reiteradamente, porque as perspectivas são múltiplas, quiçá infinitas). Simplesmente a sua capacidade de nos serenar e, ao mesmo tempo, deslumbrar.
A serenidade afirma-se quando o leitor começa a aperceber-se de que, afinal, não estava sozinho no Universo. O deslumbramento é a consequência, não apenas da situação existencial que aí é revelada, mas também da própria palavra, veículo absoluto de revelação, forma suprema de epifania, que constituiu a própria vida e obra do autor.
Outras questões, igualmente simples e profundas, emergem na sequência da anterior: o que faz de Vergílio Ferreira um dos autores mais representativos da recente literatura e reflexão filosófico-estética portuguesa hodierna? O que é que nele permite o pressentimento de que estamos perante uma voz universal? O que é que nele se adivinha de eterno?
Justamente a palavra. No início de Para Sempre, citando Saul Dias, escreve:
«A vida Inteira para dizer uma palavra!
Felizes os que chegam a dizer uma palavra!»
A Palavra, pois. Não se trata apenas de verbalizar um pensamento; trata-se, sobretudo, de fazer da Palavra a essência de um pensamento onde nada está a mais. Sentimento e pensamento poético conjugam-se, unificam-se, de modo a ascenderem ao seu intrínseco princípio da criação. Aliás, «O falar é bom. Mata a preocupação (...). O falar desoprime e revela a hipocrisia do sentir talvez um coral ou discurso de apresentação (...). – Eu disse que o sentir era hipócrita? Não é verdade. É o que está mais próximo do ser (...) Mas só as palavras o esclarecem, só nelas o sentir é verdade assumida».
Nesse universo inextricável das palavras, onde repousa, a um tempo, a grandeza e miséria do homem, como diria Hölderlin, resta-nos, mesmo nas mais nobres e dignas circunstâncias, amar o silêncio, o que ficou por dizer, o que se disse sem se ter pronunciado uma única letra.
Amar o silêncio por entre as vozes que tudo e nada insinuam: eis talvez uma das grandes mensagens impressa na escrita vergiliana, em tempo de abuso do verbo, do ilusionismo feito com as palavrs, já gastas pela inevitável massificação e consequente vacuidade da linguagem.
É a palavra dos Sofistas que renascem, com toda a vivacidade, dessa época retórica por que passou a Grécia Antiga, depois dos tempos memoriais do pensar primordial, nesse período conturbado do pensamento ocidental que se seguiu Sófocles e que antecedeu a filosofia socrático-platónica e que, contemporaneamente, floresce de uma forma ainda mais sub-reptícia, nominalista, onde os vocábulos remetem uns para as outros e não mais para o referencial ontológico que naturalmente suporta todo o nosso dizer.
Assim o lemos nas entrelinhas traçadas pela pena do escritor, e assim se lê também, de um modo explicito, no veredicto de Cabral do Nascimento, no poema intitulado «Amo o Silêncio», que tão claramente espelha o mais íntimo da sensível alma vergiliana: «Amo o silêncio e as vozes que insinuam / Meigas, ciciam musicais velados, / Fracas, serenas, pálidas, cansadas, / Doces palavras que no ar flutuam. / Amo o silêncio e a luz difusa ... E amo / A tarde cor de cinza, a chuva calma; / E o mar sem ondas, liso como a palma / Da minha mão aberta ... E, em cada ramo / Das árvores sem folhas, amo os verdes / Musgos pendentes, flácidos, em tiras ... / Assim, minha alma extática, suspiras, / Meu coração tranquilo, assim te perdes! / Rude fragor do mundo, sombra fria, / Passa de largo! Não me acordes, não! / Deixa correr a fonte da ilusão, / Enche-me a vida de melancolia» .
Isabel Rosete

Sem comentários:

Enviar um comentário