terça-feira, 28 de setembro de 2010

Em homenagem a Vergílio Ferreira II

Escrevo na doçura de um beijo,
Na meiguice do olhar dos outros,
Nos comoventes espaços silenciosos
Das palavras ditas e não ditas.

Registo, em pormenor, o Tudo e o Nada
No seio do grito Universal do Pensamento
Que se move nos interstícios da Terra
Que rodopia, em torno do seu próprio
Círculo, sempre aberto, sempre redondo.

Entrevejo, ao longe, a invisibilidade dos seres
Encerrados nos seus casulos, emaranhados
Nas mais finas teias, caminhantes, suaves
E leves, de todos os caminhos paralelos
Que a tragicidade existencial chamam
E manifestam.

Vivo no Universo insólito de um mundo sonhado.
Da realidade terrena se afasta.
Ergue-se para os límpidos céus,
Para a harmonia musical das esferas divinas,
Sempre perfeitas,
Para a singeleza do cosmos dos Anjos,
Guardiões das Consciências apoquentadas,
Auditores dos pensamentos inconscientes,
Mensageiros dos insondáveis segredos
Das mentes altruístas, que aí estão
Na face eterna do Mistério do Mundo.

Isabel Rosete

sábado, 11 de setembro de 2010

Em homenagem a Vergílio Ferreira I

Escrevo até à exaustão do sentir. Em cada noite que permaneço em estado de alerta, acompanham-me as Estrelas, a Lua, a Chuva, as Tempestades, o Silêncio que a Paz me traz e a lucidez do meu Espírito engrandece. As palavras sempre fluem… soltas, dispersas ou conjugadas.
O sono teima em não chegar perante essa ânsia incontrolável do pensamento que quer ser dito, da voz que se quer erguer no sossego dos orbes celestes.
Tudo é fonte de inspiração. Tudo impele ao mais simples e singelo acto do Dizer. Todo o pensado deve ser dito! Tem que ser dito!
O pensamento comanda a mão que, tremulamente, escreve. Um pensamento redondo que, jamais, se quer conter no seio dos limites esferoidais da circunferência que o envolve. As ideias rodopiam. Tornam-se visíveis. Mostram-se ao Mundo.
O meu pensamento não quer calar mais a sua voz. Grita, expande-se, exterioriza-se. Com outros pensamentos pretende entrecruzar-se e recolher a mais nobre seiva de outras mentes, monadologicamente conjugadas, com portas e janelas viradas para o Aberto do esplendor da Criação.
O Pensamento é a mais singular das lentes de observação do Mundo. Em si mesmo, todos os pormenores pode acolher. Dentro de si, todas as essências pode recolher.
Sem limites, navega, o meu pensamento. Sempre na inquietação de percorrer todos os mundos possíveis, determinado por um sentido universal e universalizante. Quer abarcar o Todo, sem deixar nada de fora.
Aos insondáveis mistérios se dirige com uma curiosidade infinita. Os segredos do Universo quer desvendar, não para o manipular, mas para o salvaguardar da escassa originariedade que ainda lhe resta.
Não se desfaz no quebrar das ondas, nem na alternância das marés. Permanece, aí, convicto da sua missão: observar e dizer o Mundo, ritmicamente, sem má fé, sem pré-conceitos. Com racionalidade, sensatez e originalidade.
Tudo dentro de mim. Nada fora de mim. Eis o lema que, sempre, me persegue. É megalómano? Sem dúvida… quiçá… também…! Não sei…!

Isabel Rosete
Pensamentos Dispersos
16/01/08

domingo, 24 de janeiro de 2010

Vergílio Ferreira(1916-1997)

Vergílio Ferreira iniciou a sua actividade literária na década de quarenta do século XX.Seduzido pela força do neorealismo, sofrerá uma sensível mudança que o tornou marginal à ideologia marxista, mas que o afastará também do catolicismo. O que essencialmente o fez mudar, como ele próprio escreveu, não foi a aspiração ao humanismo e à justiça, mas um conceito prático de justiça e de humanismo, pois que se os modos de concretização de um sonho podem sofrer correcção, não o sofreu neste caso, a aspiração que visava concretizar. Transparecia seguramente nesta mudança.O que seja esse equilíbrio ele no-lo diz, remetendo-o para o insondável e incognoscível de nós, um substrato gerado ao longo dos infinitos acidentes, encontros e desencontros e que nos surge como anterioridade radical às nossas escolhas e opções. Por isso "o impensável e o indiscutível subjaz a todo o pensar, e para lá dele, ao sentir", sendo sobre esse impensável que se nos organiza a harmonia do pensar, que ulteriormente tentamos explicar ou demonstrar com a disciplina da razão. Este é um dos temas mais recorrentes no pensamento de VF, a que já se referira na sua mais importante obra filosófica, a Invocação ao meu Corpo, ao considerar que "há duas zonas no homem que são a das origens e a da concretização, a do indizível e a do dizível, a do absoluto e a da redutibilidade".Daí a relevância do tema da "aparição", consentânea com a revelação momentânea de uma verdade que em nós se pode gerar lentamente, mas cujo momento culminante tem quase sempre o instantâneo da estrada de Damasco e a dimensão fulgurante do mistério. "O mistério e o seu alarme são o tecido de tudo", dirá em Carta ao Futuro (1957).Daí também o estatuto da arte, ao longo de toda a sua obra: o mundo da arte é o mundo da aparição, o mundo inicial. A arte será, como disse, "o arauto do impensável, ou o lugar onde se lhe vê a face, cabendo ao filósofo explicitá-la em pensamento", ou, noutra afirmação não menos explícita: "a arte inscreve no coração do homem o que a vida lhe revelou sem ele saber como, e o filósofo transpõe a notícia ao cérebro, na obsessiva e doce mania de querer ter razão", repetindo aqui uma ideia que sempre lhe foi cara: a de que a filosofia é um pobre sobejo do milagre da arte, e vem depois, já tarde, "como os corvos ao cadáver", pois que, como escreveu em Invocação ao meu Corpo, "todo o pensar é póstumo ao que se é, à aparição da verdade essencial, da revelação do originário. Por isso é que a filosofia é uma aventura perene como a arte. Cada filósofo recupera esse espanto inicial, de interrogação suspensa, degradando-a em pergunta quando lhe reponde com razões", deixando patente que a degradação a que se refere se reporta a uma filosofia de matriz racionalista.A arte não interpreta, revela; não explica, mostra o lado oculto do homem, por isso, em arte, saber é comover-se. Já em Espaço do Invisível III afirmara a mesma tese, em justificação do título: "mas se em todo o horizonte está presente um horizonte que o margina, até um horizonte final, se na mais breve palavra está o aviso do insondável, se o espaço do invisível se anuncia no do visível, é na obra de arte que mais presente e visível se nos revela o invisível".Em todo o caso, dando corpo a um pensamento de base existencialista, emerge o primado do sentir, "o essencial não é para se pensar mas para se sentir", que nos diz que "a verdade é amor", pelo que é a verdade emotiva a primeira e a última que nos liga ao mundo.Daí também um dos seus temas preferidos, o das "verdades de sangue": um autor que se admira mas que se não ama, "vai para o lado de nós, onde o sangue não circula ou é uma aguadilha", ou, como dirá em Do Mundo Original, "uma verdade só interfere na vida quando o sangue a reconhece", pelo que uma razão ajuda, mas não decide uma receptividade.E daí de novo a arte, inclusive a arte que lhe coube, que foi a da escrita, a do romance lírico, onde as coisas adquirem a sua essencialidade, a sua verdade emotiva, tornando visível o mistério.Mistério e espanto perante o estremecimento íntimo das coisas em nós. Aí a raíz da atitude lírica que integrará na sua actividade romanesca, fazendo do romance o lugar de cruzamento entre o lirismo e a reflexão filosófica de vertente existencial, na convicção, por si afirmada, de poder perfeitamente escoar em prosa a poesia que lhe coube, e com a preocupação acrescida de teorizar em ensaios múltiplos - apesar das suas invectivas contra a pobreza da razão - as questões apresentadas ficcional e literariamente.Todavia, o cântico ao homem é à sua irredutibilidade individual que tanto o afastou do estruturalismo e nele via a morte do homem, o cântico ao homem que assistiu à morte de Deus, tragicamente vivida em Manhã Submersa, e se colocou no seu altar com a força iluminadora que de si próprio descobriu irradiar, coexiste com a amarga experiência da desagregação dos valores artísticos, sociais, históricos e ideológicos. Entre todos, a morte da arte é a que assume a dimensão mais trágica, uma morte que é autodestruição, e que justifica muita da frieza que empresta aos seus últimos romances, nomeadamente em Para Sempre.Ao tema regressará em Pensar, numa comparação singela do aldeão que sempre foi: "Dar um sentido à vida. Para lho darem aos domingos, quando não trabalham, os campónios da aldeia embebedam-se e dão-se facadas. A arte do nosso tempo sabe-o e faz o mesmo". Entre os quatro grandes mitos modernos, Acção, Erotismo, Arte e Deus, foi a morte da Arte que mais o ocupou, a par da morte de Deus. A arte moderna esquecera o "mundo original", autonomizara as formas e divorciara-se do homem?Em todo o caso, o tema essencial de toda a sua obra foi certamente o da procura do sentido da existência num universo sem sentido, fazendo-o navegar no que Eduardo Lourenço chamou um "niilismo criador" e um "humanismo trágico", explorando até à exaustão o tema do "eu", ao mesmo tempo eterno e inscrito na finitude, a mesma finitude que o embrenha na temática da morte, num homem que heroicamente, e também angustiadamente, suporta o desafio da finitude."Tenho a corrupção lenta do tempo, tenho a eternidade a executar". Eis, numa breve expressão de Rápida a Sombra, a dimensão trágica do seu pensar, onde se desenrola uma intensa reflexão sobre o corpo e a morte. Há em todo o homem são um impulso para um mais daquilo que se é no presente, e que jamais se alcança, ou que se sabe jamais poder alcançar-se ("um apelo ao máximo" que vem do máximo que o homem é), num processo infindo a que só o absurdo da morte põe termo: "Na profundidade de nós, o nosso eu é eterno, e todavia é justamente o corpo que nos contesta a eternidade". Todavia, em Invocação ao meu corpo, VF pretendeu divinizar o corpo, naquele sentido em que o "homem é espírito e corpo", e por isso realiza o espírito no corpo ou é corpo espiritualizado, estando todo o homem nele "como um Deus panteista".No entanto, novo conflito deflagra entre essa exaltação divinatória, e a consciência trágica da sua corruptibilidade e da sua objectiva degradação, lançando o homem na angustiante consciência da sua "infinitude limitada", e ao mesmo tempo no plano heróico de saber que a morte o espera, devendo viver "como se ela não contasse", ou, como escreveu em Nítido Nulo: "viver a eternidade e, num momento de distracção, cortarem-la rente".ObrasO Caminho Fica Longe, 1943; Onde Tudo Foi Morrendo, 1944; Vagão J, 1946; Mudança, 1949; A Face Sangrenta, 1953; Manhã Submersa, 1954; Carta ao Futuro 1958; Aparição, 1959; Cântico Final, 1960; da Fenomenologia a Sartre, 1962; Introdução a O Existencialismo é um Humanismo, de Jean Paul Sartre, 1962; Estrela Polar, 1962; Apelo da Noite, 1963; Alegria Breve, 1965; Do Mundo Original, 1957; Invocação ao meu corpo, 1969; André Malreaux -- Interrogação ao Destino, 1963; Espaço do Invisível, 4 volumes, 1965- 76- 77- 87; Nítido Nulo, 1971; Apenas Homens, 1972; Rápida a Sombra, 1974; Contos, 1976; Signo Sinal, 1979; Para Sempre, 1983; Até ao Fim, 1987; Pensar, 1992; Conta-Corrente, cinco volumes, 1980-1988; Carta a Sandra, 1997 (edição póstuma)Bibliografia: Eduardo Lourenço, "Vergílio Ferreira e a Geração da Utopia", em O Canto e o Signo. Existência e Literatura, Lisboa, 1993; id., "O itinerário de Vergílio Ferreira", ibidem; id. Mito e obsessão na obra de Vergílio Ferreira", ibidem; id., "Sobre Mudança" ibidem; id., "Vergílio Ferreira -- Do alarme ao júbilo" ibidem; id., "Pensar Vergílio Ferreira", ibidem; id., "Desesperadamente, alegria", ibidem; António Quadros, "Vergílio Ferreira", em Logos-Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia, Lisboa-São Paulo, 1989-92; Rosa Goulart, O Romance Lírico de Vergílio Ferreira, Lisboa 1990; Eduardo Prado Coelho, "Signo Sinal, ou a resistência do invisível", em Colóquio/Letras, 54 (1980); Jacinto do Prado Coelho, "Vergílio Ferreira um estilo de narrativa à beira do intemporal", em Ao contrário de Penélope, Lisboa 1976; Maria Lúcia Dal Farra, O narrador ensimesmado, São Paulo, 1978; João Décio, Vergílio Ferreira: a ficção e o ensaio, São Paulo, 1977; Helder Godinho, O universo imaginário de Vergílio Ferreira, Lisboa, 1985; id., Estudos sobre Vergílio Ferreira, Lisboa, 1982; José Luis G. Laso, Vergílio Ferreira -- espaço simbólico e metafísico; Lisboa, 1989; Maria da Rosa Padrão, Um Escritor Apresenta-se, Lisboa, 198; José de Almeida Pavão, "Entre o neo-realismo e a problemática metafísica em Vergílio Ferreira", em Arquipélago, Série Línguas e Literaturas, IX, 1987; Alexandre Pinheiro Torres, "Entrada no universo angustiado de Vergílio Ferreira", em Romance: o mundo em equação, Lisboa, 1967. (Pedro Calafate)

Isabel Rosete
(investigação)

VERGÍLIO FERREIRA, por Rosa Maria Goulart

VERGÍLIO FERREIRA,
por Rosa Maria Goulart

Autor de uma obra multifacetada, repartida pelo romance, o conto, o ensaio e o diário,Vergílio Ferreira afirmou-se sobretudo como um dos grandes romancistas do séc. XX. Nascido em Melo, distrito da Guarda, em 1916, e falecido em Lisboa em 1996, o local de nascimento ficou largamente representado nos espaços literários dos seus romances, como representados ficaram outros que ele percorreu, nomeadamente as cidades de Coimbra e de Évora e o seminário do Fundão. Da aldeia, ficar-lhe-ia a imagem da montanha como local simultaneamente real e mítico, na reverberação da luz estival ou da neve do inverno; de Coimbra (em cuja Universidade estudou e que em 1993 lhe concederia o grau de Doutor Honoris Causa), gravar-se-lhe-ia na memória a Universidade no alto da colina, batida pelo sol, e metonimicamente cristalizada na guitarra dos fados e das baladas; de Évora, onde o autor foi professor lical durante catorze anos, captou Vergílio a luminosidade e a pureza dos seus espaços branços e a sua mítica ancestralidade. A contrastar com tudo isto, vem o seminário como espaço de clausura, de restrição das liberdades individuais, de terror e de princípios morais opressores.
Nos casos em que se trata de representar um real de características eufóricas (o que as salas e corredores do seminário de modo algum autorizavam  de notar que, ao contrário desta, todas as outras foram experiências de adulto), o Autor procedeu na sua escrita a uma irrealização dos espaços conhecidos e percorridos, transfigurando-os sempre em lugares míticos a reenviar para um espaço originário, não raras vezes poético. Lisboa, sua última residência, ficar-lhe-ia, por contraste, e não obstante o largo tempo em que nela permaneceu, sempre à margem, como lugar de passagem onde se não cria raízes. Daí o irónico desabafo aquando de um acidente naquela cidade, a saber: que tinha sido atropelado e que era muito bem que o fosse, porque não era dali.
Tendo-se iniciado na escrita na década de quarenta do século XX, a primeira fase da sua ficção, com O caminho fica longe (1943), Onde tudo foi morrendo (1944) e Vagão “J” (1946), seria de convergência na estética neo-realista. Mais tarde, no prefácio à segunda edição deste último livro, o único dessa fase que ele aceitou reeditar, o escritor, num balanço autocrítico, que é também de crítica ao dito movimento, demarca-se já dessa estética, deixando expressas as suas preferências por uma outra, de teor existencial, mais preocupada com as questões inerentes ao homem em geral.
Na linha da filosofia existencialista, que teve em Jean-Paul Sartre um dos seus expoentes máximos, e de escritores como Camus e o Malraux escritor da «condição humana», mas tendo ainda, num horizonte mais recuado, Dostoievski, Sófocles e os tragediógrafos gregos, e, mais próximo de nós, Raul Brandão, Vergílio adoptará definitivamente como seus os temas da vida e da morte, do amor, da solidão, da sondagem das profundezas do “eu”, na mira de um autoconhecimento que passa necessariamente pelo conhecimento do outro, da arte como forma de «dar a ver» o que a rotina do quotidiano esconde e como depuração da vida. Em última instância, mantém-se uma nunca pacificada questão em torno da «morte de Deus», com o qual Vergílio, contraditoriamente, não cessa de travar um persistente (angustiado?) diálogo, e uma nostalgia de Absoluto ou de Transcendência, como que a solicitar o preenchimento do lugar vazio deixado por esse mesmo Deus.
Colocando, a partir de Manhã Submersa e em quase todos os romances que se lhe seguem, a personagem/narrador no centro do universo narrado, Vergílio Ferreira faz irradiar a partir dela os problemas existenciais, sendo esse recurso, no seu entender, uma forma de «presentificar» a acção para assim ele próprio se aproximar mais do leitor, interpelando-o e comovendo-o. Neste sentido, está o frequente recurso à metaficcionalidade, um dos lugares utilizados por Vergílio Ferreira para pensar a arte dentro da arte ou o romance dentro de romance. E revelando-se este frequentemente, pelas características da enunciação, como o lugar de uma presença emocionada (a do eu que se narra), está aberto caminho para a expressão lírica, o que afecta categorias essenciais da narrativa como o tempo, que ora se desestrutura, originando a fragmentaridade, ora se suspende, transformando o precário tempo da vida das personagens em eternidade, ou como o espaço, que se oferece menos como local da acção do que como projecção de um encantamento irrealizante.
Transversal a toda a problemática da sua ficção está ainda o problema da linguagem como instrumento de comunicação que tanto é fonte de (des)entendimento entre os homens como limitação para dizer situações-limite. Daí a reflexão sobre a linguagem do quotidiano, sobre os (des)encontros que ela possa provocar, a que se opõe a palavra artística, a que nos coloca na senda do invisível, que diz a angústia, mas também a fascinação e o «puro espanto de existir».
Embora os livros anteriores a Aparição (inclusivamente Mudança, de 1949, cujo título é já tido como indicativo de uma viragem) viessem a anunciar uma evolução, é com este livro de 1959 que Vergílio será definitivamente consagrado como representante do romance de feição existencial. A partir daí ele glosará obsessivamente os mesmos temas, embora estes sejam expostos segundo diferentes estruturas narrativas e desenvolvidos a partir de um problema novo ou perspectivado de ângulo diferente. Fá-lo distanciando-se cada vez mais da narrativa dita clássica, com uma história bem contada e uma ordenação temporalmente sequenciada. A justificação apresentada é que vivemos na época do fragmento, que a solidez de uma narrativa una e coesa não se coaduna com o nosso tempo, ao qual falta unidade e coesão. De resto, afirma também, não lhe interessa contar histórias à maneira do século XIX, mas comover a «abalar» o leitor, deixando-lhe um problema para reflectir.
Tendo, por mais de uma vez, sido apontado como «autor de um só livro», o escritor não se mostrou muito agastado com a afirmação, que geralmente lhe chegava como forma de crítica. E isto porque, no dizer do próprio, cada novo livro (e para ele «um livro é um registo do nosso diálogo com o mundo») pretendia tão-só apresentar um determinado estádio da sua relação com esses temas que o dominavam. Assim se compreendem as particularidades que eles vão assumindo em cada um dos romances publicados: por exemplo, em Aparição havia sobretudo a experiência da aparição de si a si, ou seja, a descoberta do seu eu metafísico; Estrela Polar incide fundamentalmente nas relações do eu com o outro; Alegria Breve, prosseguindo nas mesmas preocupações introduz, de modo mais incisivo, o problema da solidão e da linguagem nova para dizer um mundo novo que se venha sobrepor ao que finda; Para Sempre é aquele onde a busca incessante da palavra mais se mostra, numa tentativa de ligar o verbo primordial ao último que o homem há-de pronunciar; Até ao fim (1987) afirma-se, pelas manifestações «artísticas» caricaturais que aí são representadas, como uma contrafacção da verdadeira arte e como a pobre herança que o fim do milénio tinha para legar ao seguinte; finalmente, Na Tua Face (1993) constitui uma questionação do escritor sobre o feio em arte, a saber: como é que o feio em arte não tem a fealdade das coisas feias da vida, mas a beleza que a arte lhe acrescenta.
Ensaísta notável, deixou-nos vários volumes de ensaios, uns de índole mais propriamente crítica (v.g., os de Espaço do invisível), outros (Carta ao Futuro, Do Mundo Original e Invocação ao Meu Corpo) aproximando-se, pela criatividade no tratamento dos temas e pela qualidade da escrita, da literatura. É isso visível em recursos técnico-formais como a figuração estilística, a estrutura sintáctica e o ritmo da frase, recursos que chegam a configurar certas páginas dessa prosa reflexiva como autênticas páginas de prosa poética.
Conta-Corrente, diário em nove volumes, cinco da primeira série e quatro da nova série, revela o quotidiano de um autor que se decide por um género que dantes várias vezes recusara, por se dizer avesso à escrita da intimidade. Não obstante isso, acabou por lhe não resistir, embora, sempre que sobre o mesmo diário se pronuncia, o coloque num lugar à parte, como se não fosse digno de se irmanar à parte mais nobre da sua obra, sobretudo ao romance. Seria este, pelo que da sua escrita foi desabafando no próprio diário, o género a que Vergílio Ferreira se dedicou com maior aplicação e maior esforço, por ser o género que, segundo ele, menos se compadecia com uma escrita «ao correr da pena» ou, ainda nas suas palavras, «de comportas abertas». Mesmo assim, o diário, tal como o romance, foi evoluindo no sentido da depuração e da reflexão intelectual mais elevada. Pensar (1992) e Escrever (2001), este de edição póstuma, a cargo de Helder Godinho, que surgem na lista das obras do Autor como «diário» são escritos fragmentários, frequentemente de carácter aforístico, numerados, e sem a indicação da data, no que se afastam das convenções do género. Todavia, a propósito do primeiro, Vergílio Ferreira achou-lhe uma justificação para esta classificação, designando-o por «diário do acaso de ir pensando». Uma espécie de reflexão ao sabor dos dias, registando, portanto, não o que ele teria vivido, mas o que diariamente se lhe oferece ao pensamento e à escrita.
Na sua vastidão, a obra de Vergílio Ferreira unifica-se nas preocupações temáticas que, sendo gerais, se configuram diferentemente consoante os géneros em que os temas são expressos. E sempre com a liberdade de quem as adapta ao seu jeito, transgredindo fronteiras entre narrativa e lírica, romance e ensaio, enfim, entre géneros ficcionais e não-ficcionais. Por isso também, o seu romance ficou conhecido pela dimensão ensaística que o Autor lhe imprimiu, classificando-o, ele próprio, de «romance-problema», igualmente conhecido por «romance-ensaio». Aliás, na perspectiva de Vergílio, o ensaio será o género que melhor poderá substituir o romance, no caso de algum dia se cumprir a, tão longamente anunciada, morte deste género literário.

BIBLIOGRAFIA ACTIVA
1943O Caminho Fica Longe (romance).Sobre o Humorismo de Eça de Queirós (ensaio).
1944Onde Tudo Foi Morrendo (romance).
1946Vagão “J” (romance).
1949Mudança (romance).
1953A Face Sangrenta (contos).
1954Manhã Submersa (romance).
1957Do Mundo Original (ensaio).
1958Carta ao Futuro (ensaio).
1959Aparição (romance).
1960Cântico Final (romance).
1962Estrela Polar romance).
1963Apelo da Noite (romance).Da Fenomenologia a Sartre (ensaio).Interrogação ao Destino, Malraux (ensaio).
1965Alegria Breve (romance).Espaço do Invisível I (ensaio).
1969Invocação ao Meu Corpo (ensaio).
1971Nítido Nulo (romance).Apenas Homens (contos).
1974Rápida, a Sombra (romance).
1976Contos (1976).Espaço do Invisível II (ensaio).
1977Espaço do Invisível III (ensaio).
1979Signo Sinal (romance).
1980Conta-Corrente I (diário).
1981Um Escritor Apresenta-se (entrevistas, com montagem, prefácio e notas de Maria da Glória Padrão).
1983Para Sempre (romance).Conta-Corrente III (diário).
1986Conta-Corrente IV (diário).Uma Esplanada sobre o Mar (contos e poemas).
1987Até ao Fim (romance).Espaço do Invisível IV (ensaio).Conta-Corrente V (diário).Correspondência (Jorge de Sena  Vergílio Ferreira).
1988Arte Tempo (ensaio).
1990Em Nome da Terra (romance).
1992Pensar (diário).
1993Na Tua Face (romance).Conta-Corrente  nova série I (diário).Conta-Corrente  nova série II (diário).
1994Conta-Corrente  nova série III (diário).Conta-Corrente  nova série IV (diário).
1996Cartas a Sandra (romance).
1998Espaço do Invisível V (ensaio; ed. póstuma).
2001Escrever (diário; ed. póstuma).

BIBLIOGRAFIA PASSIVA
À Beira. Revista do Departamento de Letras da Beira Interior, nº 1 (2002). Número dedicado a Vergílio Ferreira.
Anthropos. Revista de documentación científica de la cultura, nº 101 (1989). Número dedicado a Vergílio Ferreira.
Ave Azul, 2-3, 1999-2000 [título genérico: «Vergílio Ferreira ou o alarme de nós»].
CABRAL, Eunice, «A concepção do eu na obra romanesca de Vergílio Ferreira», in Homenagem a Vergílio Ferreira, Évora, Universidade de Évora, 1996, pp. 9-17.
CAMILO, João, «Augusto Abelaira e Vergílio Ferreira»: plenitudes breves e absolutos adiados», Arquivos do Centro Cultural Português, XIX, Paris, Fundação Calouste Gulbenkian, 1983, pp. 413-468.
COELHO, Eduardo Prado, «Vergílio, um certo retrato», Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 532 (15 de Setembro de 1992), pp. 9-10.
COELHO, Eduardo Prado, «Signo Sinal ou a resistência do invisível»; «Entre a aparição e o desgaste», in A mecânica dos fluidos, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984, pp. 57-64 e 65-76, respectivamente.
COELHO, Jacinto do Prado, «Vergílio Ferreira: um estilo de narrativa à beira do intemporal», in Ao contrário de Penélope, Lisboa, Bertrand, 1976, pp. 283-288.
CUNHA, Carlos M. F. Ferreira, Os mundos (im)possíveis de Vergílio Ferreira, Lisboa, Difel, 2000.
DAL FARRA, Maria Lúcia, O narrador ensimesmado (o foco narrativo em Vergílio Ferreira, São Paulo, Ática, 1978.
DÉCIO, João, Vergílio Ferreira. A ficção e o ensaio, Blumenau, Editora da FURB, 2001.
FONSECA, Fernanda Irene, Vergílio Ferreira: a celebração da palavra, Coimbra, Almedina, 1992.
FONSECA, Fernanda Irene, Deixis, tempo e narração, Porto, Fundação Eng. António de Almeida, 1992.
FONSECA, Fernanda Irene (org.), Vergílio Ferreira: cinquenta anos de vida literária. Actas do colóquio interdisciplinar, Porto, Fundação Eng. António de Almeida, 1995.
FONSECA, Fernanda Irene, «Fragmentação e unidade: contributos para a análise de formas textuais intencionalmente fragmentárias», in Fátima Oliveira e Isabel Margarida Duarte (org.), Da língua e do discurso, Porto, Campo das Letras, 2004, pp. 345-362.
GAVILANES LASO, José Luis, Vergílio Ferreira: espaço simbólico e metafísico, Lisboa, Dom Quixote, 1989.
GODINHO, Helder, O mito e o estilo. Introdução a uma mitoestilística, Lisboa, Presença, 1982.
GODINHO, Helder (org.), Estudos sobre Vergílio Ferreira, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1982.
GODINHO, Helder, O universo imaginário de Vergílio Ferreira, Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1985.
GORDO, António da Silva, A escrita e o espaço no romance de Vergílio Ferreira, Porto, Porto Editora, 1995
GORDO, António da Silva, A arte do texto romanesco em Vergílio Ferreira, Coimbra, Editora Luz da Vida, 2004.
GOULART, Rosa Maria, «Para Sempre: a palavra difícil», Cadernos de Literatura, 23 (1986), pp. 25-30.
GOULART, Rosa Maria, Romance lírico. O percurso de Vergílio Ferreira, Lisboa, Bertrand, 1990.
GOULART, Rosa Maria, «Vergílio Ferreira: a escrita do romance lírico», in Homenagem a Vergílio Ferreira, Évora, Universidade de Évora, 1996, pp. 19-40.
JÚLIO, Maria Joaquina Nobre, O discurso de Vergílio Ferreira como questionação de Deus, Lisboa, Edições Colibri, 1996.
JÚLIO, Maria Joaquina Nobre (org.), In Memoriam, de Vergílio Ferreira, Lisboa, Bertrand, 2003.
Letras e Letras, nº 33 (Setembro de 1990. «Dossier» dedicado a Vergílio Ferreira).
LIND, Rudolf, «Constantes na obra narrativa de Vergílio Ferreira», Colóquio/Letras, 90 (1986), pp. 35-46.
LOPES, Óscar, «Vergílio Ferreira», in Os sinais e os sentidos. Literatura portuguesa do séc. XX, Lisboa, Caminho, 1986.
LOURENÇO, Eduardo, «Sobre Vergílio Ferreira», in O Canto do Signo, Lisboa, Editorial Presença, 1993, pp. 83-185.
LUCCHESI, Ivo, Crise e escritura. Uma leitura de Clarice Lispector e Vergílio Ferreira, Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 1987.
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MOURÃO, Luís, Conta-Corrente 6. Ensaio sobre o diário de Vergílio Ferreira, Sintra, Câmara Municipal de Sintra, 1989.
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VÁRIA ESCRITA, 9 (2002), Sintra, Câmara Municipal de Sintra. (Número que recolhe as comunicações apresentadas no «Encontro Internacional Vergílio Ferreira», realizado em Sintra, 16-19 de Outubro de 2001).

Isabel Rosete
(Investigação)

VERGÍLIO FERREIRA NOS CAMINHOS DA INTERROGAÇÃO, por Isabel Rosete

A interrogação tem, para Vergílio Ferreira, um sentido ontológico e não apenas lógico, tal como as perguntas para as quais encontramos sempre respostas, nesses mesmos espaços prometaicos de que o autor sistematicamente se afasta.
Perante as interrogações que o intrigam, e à medida que vai chegando ao fim, Vergílio Ferreira guarda o silêncio, vocábulo de mérito primeiro em toda a sua obra.
A Natureza, por si mesma, encarrega-se de ir organizando esse espaço metafísico, bem como o modo de ser e de sentir do Eu que o incorpora, para o harmonizar com a morte real, sempre presente em cada acto humano, que um dia virá, amanhã ou depois, sempre acompanhada das mais radicais interrogações, por entre as quais se entretece o jogo da temporalidade da existência, quiçá a hora do balanço final, onde se esgotaram todas as perguntas e, por conseguinte, todas as respostas.
Esta postura, assumida por Vergílio Ferreira, puramente conceptual e que o conduz a fazer uma distinção clara entre interrogação e pergunta, emerge, no seio da sua obra, como uma das teses centrais, defendidas em Invocação ao meu Corpo.
As diferenças entre os dois termos são substanciais. Convém atentar, com precisão, em cada uma delas. Não se trata aqui de simples nuances, mas de questões de fundo que marcam a finura e a própria trajectória, a concepção de mundo, de vida e de homem perfilhada pelo autor.
À semelhança de Heidegger faz-nos entrever uma postura que, adopta como traço marcante, a indagação permanente, a interrogação não apenas como forma de estar, mas, sobretudo, como forma de ser de um Eu inextrincavelmente irredutível.
Senão vejamos: «Uma pergunta não interroga: uma pergunta diz a resposta. Porque uma pergunta está do lado do problema a resolver, do ainda simplesmente desconhecido; e a interrogação está do lado do insondável. A pergunta desenvolve-se na clara horizontalidade; a interrogação na obscura verticalidade. Como em jogo de cabra-cega, em que há seres à nossa volta, a pergunta orienta-se entre os que lhe não pertencem até achar o que procura. Mas a interrogação não encontra, porque nada há para achar. O limite da sua esperança está menos no triunfo de um encontro, do que no cansaço, na resignação, ou na evidência natural do que nos coube, como nos é evidente ter cinco sentidos e não mais» .
Digamos que a história do pensamento ocidental nos legou a tradição, cada vez mais comum, da «pergunta-e-resposta» como um mero passatempo, como um simples jogo que brota e está presente na nossa linguagem de todos os dias. E assim vamos jogando esse jogo, sem que nos apercebamos da sua existência, em cada acto de pensamento ou em cada acto de fala.
Até mesmo o interrogar depressa degenerou em pergunta. O interrogar, qual modo inaugural de questionar o mundo, tivializou-se no jogo de «pergunta-e-resposta» quotidiano, perdendo, deste modo, o seu enraizamento ontológico primordial.
O espanto original quebrou-se. O mundo tornou-se deveras evidente para comportar essa interrogação autêntica: aquela que quer captar o sentido último das coisas, no seu brotar primordial; aquela que procura o verdadeiro significado daquilo que é em si mesmo, algures perdido na trivialidade das aparências e na falsa evidência das sombras que nos percorrem.
Ao espanto original de um olhar virgem e indefeso, pré conceptual, não moldado pelos traços artificiosamente construídos pela “civilização”, pela “cultura”, que só vê e faz ver o quer que seja visto, o que nos respondeu não foi, ainda, a suspensão atónita. O que respondeu foi a resposta. E, assim, sofismado o primeiro porquê, organizou-se uma cadeia ininterrupta de porquês, sob a base de uma certa confiança, fácil, ilusoriamente evidente e esquecida como um sono. Não se perturba mais a certeza ou a suspeita da emergência de uma resposta provisória, porque uma resposta é, em si mesma, definitiva.
O que está em causa, o que se põe em questão, é a inteligibilidade da vida. Sabemos que o reino do homem é o reino do humano, que a expressão do seu poder não é propriamente o domínio da Terra, dos mares ou dos astros, mas o domínio das sombras.
A interrogação alarmou-nos e, deste modo, acabou em pergunta. Fecharam-se todas as portas e todas as janelas e, mesmo assim, não pudemos permanecer no reino das mónadas leibnizianas, mas apenas no espaço limitado que enquadra a nossa dúvida no extremo rigor de uma construção.
Aí encerrados, jamais alguma interrogação nos solicita do espaço livre: «Pesados muros do nosso repouso, aí se dorme tranquilo, e a pergunta que se formula é a resposta que a dá, que a condiciona no traçado dos muros onde ela embate, onde ela se estrutura e se molda» .
Vergílio Ferreira instaura, neste contexto, a dialéctica claridade/sombra, ou, se preferirmos, luz/sombra, nos mesmos moldes em que Platão no-la apresenta, logo no início do Livro VII da República, aquando da exposição da “alegoria da caverna”, a qual corresponde, por sua vez, à dialéctica realidade/aparência, modelo/cópia, inteligível/sensível.
Caminhando para além de Platão, ao reino das sombras, Vergílio Ferreira acrescenta o espaço específico do mistério, de cuja voz demoníaca o homem se alimenta e vivifica.
Mas há, também, o miraculoso e o estranho, o espanto e a inquietação. Há sempre uma outra realidade, para além da realidade, um outro homem para além do homem, um outro mundo para além do mundo… E quando o nosso sono se quebrar, o nosso mundo ressurge, esse mundo das superfícies distintas, mas também das formas perecíveis. Assim, «à pergunta dos nossos olhos, a resposta vem ter connosco, adianta-se à sua formulação».
O reino das sombras continua a fascinar-nos, exactamente do mesmo modo que seduzia os prisioneiros algemados, de pernas e pescoços, dentro da caverna platónica. Talvez ainda não nos tenhamos libertado dela e, por isso, a voz do mistério continua a atrair-nos com a mesma intensidade, apesar da sua natureza demoníaca. Além disso, se a claridade encanta, também decepciona, ofusca, confunde…, porque o que nos é revelado, quando é revelado, apresenta-se, a um tempo, como vitória e como derrota.
Se a nossa ânsia de revelação se nos apresenta sempre como infinita, se o nosso desejo de aceder à suprema epifania é indeterminável, não deixamos, porém, de manter o obscuro desejo de que o mistério aí habite e permaneça.
O que nele nos atrai é absolutamente invencível: é o desejo contraditório de aniquilar o desconhecido e, ao mesmo tempo, de conservar o miraculoso. É o contraditório desejo de subordinar o estranho à claridade inteligível e, concomitantemente, de manter nele ainda a voz do insondável. Caminhamos sempre, mesmo que algum freio nos retraia, para o ex traordinário, para o im-possível, para o e-norme, a limite, para o mais inquietante.
Para Vergílio Ferreira, o mistério é uma forma de mensagem que se traduz, tanto «na evidência desinteressada, como no desventrado logro do prestidigitador. Assim reconhecemos que há uma voz atrás da voz, uma força além da evidência, uma realidade atrás da realidade, uma interrogação além da pergunta. Assim reconhecemos que um vasto mundo de sombra nos engloba, o da claridade, e que esse nos fascina» .
Sentimos o eco de uma pergunta que nunca chega a perguntar, mas também o eco da interrogação que não é senão imóvel espanto. Deste espanto brota a notícia na inquietação de tudo o que nos inquieta, a notícia na sedução do enigma e, também, o mistério que é apenas a grande incógnita do desconhecimento.
A interrogação é o limite de todas as perguntas que possamos colocar, tal como o mar, infinito, é o limite de todos os rios que possamos imaginar. Lancemo-nos na profunda interrogação, a única que verdadeiramente interessa. Na interrogação que ultrapassa todos os limites, todas as fronteiras; na interrogação que fala ao que não tem fim e à morte: «Como a luz vibrada ao espaço aí se perde em vazio, no vazio se nos esgota o interrogar. Não assim na resposta destes muros que me cercam onde embata a chama breve da pergunta acidental.» .
Isabel Rosete

O LUGAR DA INFÂNCIA E A INSTAURAÇÃO DE UMA POÉTICA DA EXISTÊNCIA EM VERGÍLIO FERREIRA, por Isabel Rosete


O NOVO HUMANISMO: O LUGAR DA INFÂNCIA E A INSTAURAÇÃO DE UMA POÉTICA DA EXISTÊNCIA EM VERGÍLIO FERREIRA



O sentir, os sentimentos que em nós o mundo desperta, reside no homem, sempre à flor da pele, mas também acima de si mesmo, evocando uma necessidade de transcendência do “eu” que parece não caber dentro da sua própria esfera; não como uma contingência, mas como uma necessidade, tão básica e tão preciosa como a própria existência. Por isso, «não houve lua em toda a noite e foi pena. Fazia-me bem ao sentimento um pouco de melancolia. Não tenho melancolia, eu. Também não tenho nada para em vez dela. Raiva, desespero, qualquer porcaria assim. Qualquer que estivesse acima de mim e me tomasse à sua conta. Estou metido no meu tamanho e assim é mais difícil de aguentar, porque tenho de domesticar o que é maior do que eu. De vez enquando naturalmente há a pressão. E então há a tentação de me deixar ir. Não vou. Olho à volta e tudo é grande e cabe lá tudo o que em mim é demais» .
Mais do que uma poética da prosa, em Vergílio Ferreira verifica-se uma poética do espírito, ou, se quisermos, uma poética da existência. Mas o que há é, sobretudo, uma poética do humano. É inarredável do seu espírito criativo um humanismo absoluto, mesmo quando tomamos contacto com o seu ensaísmo ou com a sua obra ficcional. É também aqui, nesta dimensão da palavra igualmente criativa, que se afirma o espírito de criador total.
É, ainda, essa Palavra infinitamente criadora que nos revela essa preocupação sistemática em pensar o homem, na sua humanidade; o homem, o que existe de mais espantoso no seio da existência. Assim o vê o autor quando cita os primeiros dois versos do segundo coro de Antígona: «O homem teve sempre a unificação do tronco e só nos ramos era diversificado e folclórico. Agora é só diverso e como justificar a diferença sem nada em que permaneça? O homem é um jogo de espelhos, com reflexos mútuos e divertidos sem nada do eu seja a reflexão. O homem é a luz de um astro para haver luz e ainda há. O homem é a ficção de si sem nada do que ainda seja ficção – mas malabarismos mentais acabou» .
Para além de todas as considerações, o autor procura uma definição de homem. Importa saber, não apenas “O Que é o Homem?”, questão essencialista que exige uma resposta do tipo “S é P”, que procura, à maneira dos lógicos, uma definição nominal, mas, sobretudo, “Quem é o Homem?”, seguindo a linha existencialista, segunda a qual a figura humana é determinada não tanto pela sua essência, mas pela sua existência. Sabemos que há múltiplas definições de homem, desde a apresentada por Cícero no princípio de todas as reflexões humanistas «gens nulla tam fera», «tam fera quae non scicat Deum esse» – ou de Aristóteles que o rotulou com a “etiqueta” “  ” e fê-lo carregar o peso da pura racionalidade durante séculos.
Foi responsável pela existência de um Homem marcado pela ausência do sentir, dos sentimentos, que mesmo presentes não são nobres, têm um estatuto inferior ao da razão, continuando a dualidade antropológica determinada desde Platão e assaz acentuada por Descartes e outros mentores do racionalismo.
Mas sabemos, também, que o homem «é um animal que ri, é um bípede sem penas mas antes disso porque só aí começa a ser humano, um animal religioso». Independentemente das definições, torna-se claro para o autor a emergência dessa necessidade de o homem ser humano, não obstante o orgulho e a mediocridade, a sabedoria, a inteligência ou a ignorância, a petulância ou a estupidez. Mas o que interessa é explicar o mistério da vida, o mistério da vida humana, aquém e além de todas as definições, porque o homem é, para Vergílio Ferreira a sua própria vida: a sua essência reside na sua existência, ou melhor, a sua essência reside no seu próprio modo de vida. E é na infância que encontramos a verdade essencial e indestrutível para a vida inteira, essa verdade guardada na memória que retém todo o passado e anuncia todo o futuro.
O tema da Infância do homem, da infância do próprio autor, surge na escrita vergiliana antes de mais porque é um tema que faz remontar ao mais originário, ao início, à fonte impalpável do sentir. Assoma, naturalmente, desde Manhã Submersa (1988), sendo depois recuperado em muitos dos seus romances posteriores.
A Infância é essa espécie de menoridade mental, uma espécie de primeiro estádio existencial, o primeiro modo de ser e de estar do homem no mundo, onde repousam só aquelas coisas que existem para quem não cresceu.
Vergílio Ferreira não se coloca, obviamente, numa posição psicologista ou psicanalítica, quando escreve sobre a infância, sobre a sua infância, mas numa linha puramente existencialista, que envereda pelo sentido da auscultação das marcas de um “eu” vivente sempre personificado, mas nunca objectivado, que, aliás, perpassa, toda a sua obra. Esse “eu” vivente, nesse primeiro estádio existencial, incorpora em si o excessivo de tudo quando a vida começa, o entendimento do incompreensível, a melancolia de estar só.
«A infância, lembro-me às vezes, escreve Vergílio Ferreira, em Até ao Fim. Lembro-me pouco, é curioso. Possivelmente tem-se a infância do que se é na idade adulta. E não ao contrário. A única coisa que me lembro na idade adulta – será isso ser-se? A única coisa que me coube na idade adulta é aguentar. Aguentar é ser contra o que nos é contra, tudo tem sido tão contra. Mas às vezes, a infância, a adolescência – que é que vem ter comigo desde então?» .
Vergílio Ferreira determina, aquém e além de todas a definições ou problemáticas, o seu grande objectivo para a humanidade:
(1) «Retornar à medida humana e está lá a grandeza toda»;
(2) «A reconversão ao microcosmos em que tudo está ao alcance da mão»;
Afinal, «o homem é que criou tudo que criou. E ao princípio era ele. O homem só não é o princípio quando é o fim estendido para arrumação». Então já não falamos do homem, mas «do lixo municipal».
Mas Vergílio Ferreira, o narrador, detesta este tipo de figura, de rosto, em que o homem se tornou, pela sua mania do problema, pela mania de entender, por essa obsessão excessiva de ser histórico, «sentado na História como se ela fosse um carro eléctrico» .
E detesta-o, ainda, por trabalhar a um número alto de pulsações por minuto, mas, sobretudo, por se parecer consigo, Vergílio Ferreira, pelo que o repulsa em si mesmo: essa «emoção fácil», esse «vício reflexivo» . O homem é assim mesmo; e o seu «destino é estoirar», a não ser que haja um freio que se lhe coloque, sempre que não pensa como um animal racional, sempre que não tem ideias e viva, apenas, de violência e de inutilidades.
Mas o que podemos dizer, ainda, do Homem? Encontramos ou não, um conjunto de palavras que o possam “definir”, ou pelo menos, determinar os traços do seu ser si mesmo? «Olho as últimas estrelas, mas tudo é falsificação. Que outra definição para o homem? Também gosto de definir. Génio no desemprego, também. Construção aérea de si, imaginário de si. Também. Ser falsificado. É a definição do Homem.»
Essa poética do humano, essa poética da existência, onde Vergílio Ferreira funde, em última instância, o homem e a arte, é anunciada e enunciada em Do Mundo Original, onde o autor reflecte especificamente sobre a arte, sobre o romance, na esteira de Malraux ou de Cassirrer, apontando no próprio destino da arte o destino do homem (tema que desenvolveremos com particular acuidade no próximo capítulo), também claramente enunciado numa obra posterior – Pensar (1992) – onde perguntar pelo futuro da arte torna-se sinónimo do perguntar pelo futuro do homem .
Nesta obra se vislumbra o autor de Espaço do Invisível. Uma vez mais e sempre a questionação das coisas e do mundo, a reflexão em torno da arte e de todas as suas implicações estéticas na sua relação com o tempo.
Desta notável obra ensaística dois livros que ficarão, «para sempre», como um marco notável do ensaio contemporâneo: Invocação ao Meu Corpo e Pensar, estes últimos escritos de acordo com o estilo do seu Diário (a sua obra maior em extensão, pois abrange nove volumes, publicados entre 1800 e 1994).
Pensar, assume já uma dimensão fragmentária, pois é constituído por breves apontamentos de reflexão acerca da vida quotidiana, do país e do mundo, desse mundo que o autor contemplava sem se deixar envolver por ele de um modo directo, mas cujo íntimo sofrimento não era menor por isso. Projecta-se uma vez mais, o autor, nesse Espaço do Invisível, ou seja, nesse espaço metafísico onde só as ideias e o espírito que lhes é subjacente sobrevivem.
De facto, movemo-nos por entre a invisibilidade como quem se move por entre nevoeiro denso. Por ela, a nossa vida verdadeira submerge ao olhar do mundo. Nasce, porventura aí, o nosso sofrimento maior. Talvez a nossa solidão definitiva. Por vezes, a solidão do escritor é um mito, há muito instaurado em certas mentalidades. Não obstante, ser solitário é isso mesmo: ser invisível face ao olhar agressivo e violento do mundo, um mundo cada vez mais incompreensível perante cada existência individual. Ao olhar do espírito, a complexidade do mundo assume uma dimensão absurda, pois os caminhos do homem devem procurar a simplicidade. Este será sempre um dos princípios da superior criação: só pela simplicidade poderemos algum dia ser verdadeiramente fecundos.
E apesar de fragmentário, em Pensar, há uma nova compreensão do homem, um novo julgamento acerca da nossa condição de seres viventes no meio social. Mas há, também, uma visão cristalina, como se o autor estivesse a descobrir o mundo pela primeira vez. Sentimos sempre essa obsessão: a procura pelo começo do começo, a busca do inaugural, do absolutamente primeiro, tão fascinantemente presente em Até ao Fim: «Todo o começo é ingénuo e necessário. Toda a esperança está cheia de um deus mortal. Um filho que nasce, uma obra que se inicia. Uma verdade que se ilumina. É a história do homem (...)» .
É preciso ser simples até à origem, até ao elementar e «entender o sinal do início. Do que é gratuito». É preciso regressar às «origens do mundo na terra final desabitada», e tomar nas mãos toda a história do Homem, «desde um dia até um dia», e atirá-la para o mar onde se dissolve na «espuma enrodilhada», dispersando-se no seu rumor. Porque o autor sabe que o «Universo vai começar», ouve-o no «estrondear intenso das águas», como não ser ele aí no começo de si. «E o aroma intenso à vida, à fertilidade, o mar sabe a voz primordial» . Porque, afinal, o que há a nascer não tem memória como é próprio de quem nasceu.
Mas, no entanto, essa visão do homem que é ao mesmo tempo uma visão do começo, da origem, não é desencantada (apesar da aparente amargura de múltiplas afirmações, pois a lucidez é o seu principal atributo. E não há lugar para o desencanto ou para a desilusão, ou, mesmo, para um desânimo fatal. O autor, continua, “até ao fim”, com a sua tarefa de questionador. E é na própria interrogação que o leitor quase consegue vislumbrar a resposta. Dessa iluminação da palavra, resulta a essência da “genialidade” de Vergílio Ferreira, conceito que utilizamos secundando o conceito goethiano no que respeita ao universalismo da literatura.
Dessa cristalinidade presente em Pensar, obra onde não existe propriamente uma teoria filosófica ordenada, mas um conjunto de reflexões direccionadas numa ideia fundamental, que é, justamente, a defesa do espiritual contra o material, o desejo de ver justiça no, lugar da injustiça, dizíamos que o autor parece descobrir o mundo novamente, como se até aquele momento estivesse adormecido num limbo qualquer.
Se não encontrámos ainda a tão apregoada “maturidade” do escritor, tão discutida pelos críticos, mas que para nós ainda não se tornou um conceito claro, cabe nos abordar onde a capacidade reflexiva se alia à “maturidade” da palavra e no qual o nosso autor explana as principais questões que dizem respeito ao homem, tema central e unificador de toda a sua obra.
Esse livro, Invocação ao Meu Corpo, representa o lugar-limite do pensamento do autor. O corpo de que aqui nos fala, como sendo uma das temáticas fundamentais, não é apenas o seu, mas sobretudo o de todos nós, filhos de uma terra à qual damos o nome e a qual, por sua vez, nos dá o nome. Pelo corpo somos os imediatos questionadores do universo: nada é superior à força divina, mas também nada é superior à nossa imanência.
A circunstância imanente, a condição imanente, material, contingente, mortal, acaba por se tornar um poder na ordem cósmica; somos limitados dentro dos nossos limites: essa é a primeira grandeza do homem. Se assim não fosse seria impensável construir a Civilização; seriam impensáveis o afecto e o amor, bem como a loucura apaixonada dos grandes desafios; em suma, todo o imaginário que nos faz ter apreço pela vida.
O que neste livro é colocado em evidência é o seu humanismo; é a compreensão do humano na sua totalidade que é aqui entrevista. Trata-se de uma visão pessoal (e por isso é que é original) em torno, não só da condição humana (e segundo o “humanismo existencialista”), mas, sobretudo, em torno do destino e do dinamismo desse mesmo destino, subjacente ao grande espírito universal. Este espírito obedece, pelo menos desde Hegel, a uma força cósmica, invisível na sua essência, que o faz mover sem disso se dar conta.
O que faz do humanismo de Vergílio Ferreira um novo humanismo, é precisamente o lugar que nele o homem ocupa. Desta vez, não é apenas o espírito universal a causa principal da reflexão, embora este permaneça implícito. O que está precisamente em causa é o homem e a sua contingência. Existem, porém, os tais universos paralelos, de que falámos no início, que não se compreendem fora dessa contingência. Enunciámo-lo já: a Morte, o Tempo, Deus, a Razão e o Mistério a tudo subjacente. O que Vergílio Ferreira procura resolver é, simplesmente, a conciliação do inconciliável, essa mesma problemática já abordada na cultura e pensamento português, por Pedro de Amorim Viana e, posteriormente, por Sampaio Bruno.
No entanto, a posição de Vergílio Ferreira deve ser compreendida, de acordo com o próprio tempo e de acordo com determinadas coordenadas histórico culturais que em nada se assemelham às posições dos autores supra referidos. É certo que a dicotomia fé-razão permanece, mas é de notar que Vergílio Ferreira não se coloca na posição de um místico, antes, pelo contrário, pois o seu racionalismo, baseado na retórica e numa dialéctica mais próximas do fim do século, não lhe permitem o arroubo místico, apesar do intenso simbolismo de que se reveste a sua obra ficcional.
O autor sabe que a questão da crença não é passível de um tratamento racional, mas a razão aceita-o, da mesma forma que é capaz de aceitar o enigma da verdade. Não devemos explicar Deus por aquilo que ele é, a não ser pela sua própria divindade; a não ser pelo mistério que encarna. E não devemos ignorá-lo, simplesmente, porque Ele não é passível de uma explicação: pressente-se, está ao nosso lado, pois é assim que queremos que ele seja.
E é assim que o aparentemente inconciliável se torna aparentemente conciliador: fazer do homem, mais uma vez, o centro de todos esses universos paralelos. Esta é, seguramente, uma das teses centrais que podemos recolher no universo literário vergiliano, e pela qual é anunciado o lugar próprio do novo humanismo que nos é proposto. O autor procura a total elevação do humano ao considerar o Homem como corolário de Deus, da Razão, do Tempo e da Morte; universos paralelos que se unificam e se tornam um só; e essa unificação dá-se; dá-se justamente na assumpção do corpo, o verdadeiro sistema que nos rege e pelo qual nos guiamos; é nele que reside a verdade absoluta; é nele que procuramos as respostas para as grandes dúvidas que nos assaltam na angústia do tempo.
Seria tudo mais fácil, talvez, se conhecêssemos os limites da razão. Mas, mesmo essa, que ilusoriamente parece dominar, possuem territórios inexplorados; não lhe conhecemos o limite e não o conhecemos, muitas vezes, devido, não só ao excesso de razão, mas também devido à ausência dessa mesma razão. Por ela se determina a sua moral, bem como toda a sua conduta, presente ou futura. Por sua vez, também é possível vislumbrar a sua ausência pelo gesto inconsequente, pela palavra fácil, pelo pensamento irreflectido.
Não faz da razão a essencialidade do homem e essa é simplesmente a sua humanidade. Pela sua instauração, pela sua evidência, já não se pode esperar a resposta definitiva, pois a evidência é, por si mesma, a resolução de toda a dúvida.
Não basta, todavia, a razão para demarcar o humanismo de Vergílio Ferreira. Há dois universos paralelos que parecem lutar um contra o outro. Nessa luta, tão eterna como o espírito humano, estão em jogo o destino, a predestinação e o acaso, quer dizer, uma vez mais a pura contingência. É ela que determina o fascínio de estarmos vivos: a luta entre o Tempo e a Morte não é mais do que o grande desafio do Ser em relação ao seu limite desconhecido; Tempo e Morte são ilimitados, mas, note-se, e em conformidade com os traços mais finos do pensamento vergiliano, é o próprio homem que os instaura: o Tempo é uma construção mental e a necessidade da sua instauração corresponde ao milenar sofrimento humano.
Tornamo-nos escravos da hora, não só em homenagem àqueles que cumpriram o ser tempo, mas sobretudo pela necessidade de nos regermos por fusos que nos fazem sair do caos, pois sempre fomos avessos a ele, mesmo que nos lembremos do princípio grego, que data do início dos tempos, segundo o qual a ordem, o cosmos nasceu do caos, como do seu princípio originário.
A Morte, por seu lado, é outra construção mental, pois corresponde a outro desejo, que se traduz na necessidade de explicação de um universo do qual nada sabemos e pelo qual a nossa curiosidade arde de inquietação permanente. De acordo com o pensamento do autor, esse estádio não nos pertence e não nos pertence de tal forma que devêramos ignorá-lo, apagá-lo da nossa memória: rouba-nos energia que deveríamos aplicar, por exemplo, na resolução de certos destinos menos misteriosos, mas mais conformes à nossa humanidade.
E, por fim, o grande Mistério do Mundo, que não abarca apenas a morte, mas toda a essencialidade divina, ou seja, toda a opacidade de Deus; uma divindade tão misteriosa que, que por mais que a nossa crença queira ignorá-la, permanecerá sempre como uma entidade, não apenas misteriosa, mas assume em si a unificação de todo o mistério universal. No pensamento vergiliano, o Mistério avulta como a essencialidade absoluta. É por isso que o autor jamais abdica da questionação. E questionar o Mundo devia ser o nosso primeiro destino, em vez de nos mantermos no comodismo da pura passividade, dado, não obstante, a nossa ânsia de clarividência, ou, como havia dito Aristóteles, o nosso desejo, natural de saber, de conhecer o mundo, de conhecer os homens e de nos auto-conhecermos, bem como o mistério, a auréola enigmática que envolve tudo isto.
Dessa interrogação ao Destino, princípio que aplicou ao estudo biográfico dedicado a Malraux, uma das suas grandes influências teóricas, um dos seus grandes guias, ausculta-se sempre a premência da morte e, como tal, a auscultação do Mistério. É por ele que vivemos; é por ele que a esperança recusa abandonar-nos. Porque o Mistério será, talvez, o último estádio do espírito, o último estádio da interrogação interminável.

Isabel Rosete

VERGÍLIO FERREIRA: ENTRE O SILÊNCIO, A MORTE E O ENIGMA DO “EU”, por Isabel Rosete

VERGÍLIO FERREIRA: ENTRE O SILÊNCIO, A MORTE E O ENIGMA DO “EU”



«Seremos sempre cúmplices do silêncio
nada mais vagueia no
infinitamente grande espaço
só o chocalhar dos rebanhos
que também se chama solidão

Só o cantar longínquo
Das feras tão perto de nós
Fora das águas e dos abrigos
Apenas o rasto desaparecido
De tantas figuras humanas
Criaturas tão terrenas».

José A. Ribeiro


«Tento, há quantos anos, vencer a dureza dos dias, das ideias solidificadas, a espessura dos hábitos que me constrange e tranquiliza. Tento descobrir a face última das coisas e ler a minha verdade perfeita» . Este é um dos lemas centrais que consagrou um homem e uma escrita que ficou “para sempre” e “até ao fim” de todos os seus/nossos dias.
Vergílio Ferreira percorre, em toda a sua obra, os laços mais estreitos da intensa indagação sobre o destino humano, pautado por uma rara exigência estética e filosófica. Viveu, até ao limite, o drama do prisioneiro da escura caverna platónica que, afinal, ainda não nos abandonou. O tangível, em vez de o saciar como aos demais, desperta-lhe um incontrolável apetite de absoluto. Tinha presente todas as imagens, as da sua vida, desde a infância de seminarista involuntário e des-crente, mas também as do mundo e dos homens que sempre observara com olhos de águia. Sempre pretendeu chegar tão próximo quanto possível às derradeiras ideias que pelas imagens assomam, e assim compreender a sua radical significação, porque a luz doce da facilidade, do elementar, do simplório, queimava-o como chama viva.
Leu Malraux e deixou-se abalar até ao fundo de si mesmo pelas Vozes do Silêncio, pelas vozes subterrâneas, que vêm de longe e apenas tocam as almas mais sensíveis e os espíritos mais atentos e perspicazes, esses que se mantêm numa espécie de envolvência com o mundo, auscultando-o na sua profunda e radical significação:
«Ouço as vozes subterrâneas, a alegria mecânica, aos passos cronometrados azáfama de nervo e de esquecimento que adivinho ao longe, numa metrópole-síntese construída em arame e cimento, e é bom que essas ressoem na minha boca».
É com estas palavras que Vergílio Ferreira inicia a sua Carta ao Futuro (1958), dando conta, afinal, daquela que foi sempre a sua irreprimível vocação – a de grande questionador. Conforme disse em entrevista à revista Ler : «Devo ter tido, muitas obsessões. (...) Mas esta é fundamental: o problema de me interrogar sobre o meu destino, de dar significação a tudo o que me ocorre, ao mundo como ele é. A vida tem a sua significação máxima nela própria e em nada do que a excede. A vida é um valor maior. É um absoluto. Foi esta a minha principal obsessão, daquela que fui colhendo outras obsessões secundárias».
Esta é uma linha que atravessa a obra ficcional e ensaística do nosso autor. Estimulado pelas sombras tutelares de Camus e Malraux, o itinerário intelectual de Vergílio Ferreira, oferece-nos uma singularidade imediata de entre os escritores seus contemporâneos. O seu labor literário, ao contrário de muitos outros, foi partilhado por igual entre a criação e a reflexão crítica e estética, uma à outra se inflectindo no sentido que conduziu, por exemplo, ao nascimento de Aparição (1959), como romance, Do Mundo Original (1979) e Carta ao Futuro (1958), como ensaios.
A Arte e o Saber, amplamente discutidos nestes livros, são os milagres possíveis do humano. E referimo-nos, mais particularmente, a Mundo Original e aos volumes que compõem Espaço do Invisível (I – IV / 1965 – 1987), obras fundamentais para compreendermos a postura estético-artística do autor, respectivamente, sobre os temas: «Do não progresso na arte», «Da fraude artística», «Discurso e silêncio em arte»; «Da comunicabilidade das artes», «Do romance viável», a «Arte e os sentidos» ou «Do artista ao seu crítico»; «Da responsabilidade artística», «O artista e a legenda», «Existencialismo e literatura» e, ainda, «Escrever», «No limiar da palavras/pensamento», «A morte do homem», «O tempo» e o «Humanismo contemporâneo».
Não esquecendo a importância crucial de Invocação ao Meu Corpo (1969), onde o autor, para além de se referir às questões da arte propriamente dita, tece profundas reflexões sobre essa obsessão de interrogar, ao desenvolver o seu pensamento na linha de uma hermenêutica assaz cuidada e rigorosa sobre as noções de “pergunta”, “interrogação”, “resposta”, “insondável”, “espanto original”, “mistério”, “enigma”, “apelo”, “o Absoluto”, o “eu”, a “verdade”, a “evidência”, a “vida”, o “tempo”, a “morte” e o “homem”, temas/problemas que perpassam o pensar vergiliano sempre em demanda.
Em Invocação ao Meu Corpo, presenciamos, justamente, o homem que escreve «pela noite fechada de silêncio», sob o signo de uma evidência que brilha na sua linearidade «no diagrama das estrelas», o homem que ouve as vozes obscuras, as vozes da sua gravidade, da flagrância terrível e do excesso que o violenta, essas vozes que estão aí e falam, que «vêm na opressão da montanha, toda aberta à minha frente, do espaço irradicado, do silêncio que cresce desde a imobilidade da Terra» .
Em Aparição, esse romance absolutamente espantoso que nos suspende a respiração até ao último arrepio, sentimos o homem, Vergílio Ferreira, que relembra numa sala vazia, ao mesmo tempo que escuta, «o indício de um rumor de vida e o sinal obscuro de uma memória de origens.» , Mergulhado nesse «silêncio de estalactites», perante o qual só a lua conhece a sua voz primeira. E, então, sente nas vísceras a aparição fantástica das coisas, que de objectos inertes fazem estremecer pela sua face de espectros; sente as ideias e a ideia de si, convicto de que «nada mais há na vida do que o sentir original, aí onde mal se instalam as palavras, como cinturões de ferro, onde não chega o comércio das ideias cunhadas que circulam, se guardam nas algibeiras» .
Aí permanece o escritor que se sagra em silêncio como um dedo na fonte, convicto de que a cartilha onde tudo vinha escrito não passou jamais de uma mera ilusão para todos aqueles que não foram capazes de perceber que nada estava ainda escrito, porque tudo é sempre novo e fugaz invenção de cada hora, “isso” que vibra nos ossos e que escorre pelo suor. A própria presença ilumina-se em si próprio, quando surge o eco longínquo das vozes que trespassam todo o seu corpo. Estes momentos são verdadeiramente miraculosos e, por isso, dificilmente pensáveis.
No entanto, assoma essa simples verdade que se traduz tão-só na constatação que ele, Vergílio Ferreira, está vivo e se habitua a essa evidência, simplesmente traduzida num “eu” que se sente como um absoluto divino. Mas a constatação e a evidência depressa se tornam em certeza fulgurante e Vergílio Ferreira sabe que ilumina o mundo, porque há uma força que lhe vem de dentro e que se implanta na vida necessariamente.
Trata-se de uma auto-totalização – «esta totalização de mim a mim próprio», é a expressão utilizada pelo autor – que não o deixa ver os seus próprios olhos, nem pensar o seu pensamento, porque esta totalização é, a um tempo, os olhos e o pensamento deste homem queimado pela verdade sempre que vê o absurdo da morte e pretende segurá-la nas suas próprias mãos, revê-la em todas as horas de esquecimento. A morte, essa outra grande obsessão, que se lhe escapa por entre os dedos, como fumo, deixando-o «embrutecido, raivoso de surpresa e de ridículo» .
O escritor sabe que só há um problema na sua vida (na Vida): determinar a sua (nossa) condição de eterna efemeridade e, a partir daí, restaurar a plenitude e a autenticidade de tudo. «Tudo» significa aqui: alegria, heroísmo, amargura, cada gesto, cada acto vivido e/ou evocado. E, só assim, «ter a evidência ácida do milagre que sou, de como infinitamente é necessário que eu esteja vivo, e ver de pois, em fulgor, que tenho de morrer» .
O autor instaura, desde o início, a dialéctica vida/morte, presente ao longo de toda a sua obra, presente em cada pensamento e em cada acto da sua escrita. Digamos que a mais plena consciência da vida é, simultaneamente, a mais plena consciência da Morte, ou, como diria Rainer Maria Rilke – poeta de dimensão universal, poeta da vida e da morte – a morte não é senão esse outro lado da vida que apenas não está iluminado ou virado para nós; esse outro lado da nossa existência que nos permanece sempre velado.
Vergílio Ferreira, nesse excesso de consciência do humano, assume tão incontestável facto até à exaustão de si mesmo, mesmo que não o aceite na sua máxima e absoluta exuberância, familiaridade e inquietante estranheza. É este o grande mistério, o grande enigma da existência: viver sabendo que a morte, em cada instante, se avizinha, sem que possamos adiar ou impedir a sua chegada.
A consciência da interioridade é abissalmente profunda, tão profunda como a da morte impregnada na vida, a sua outra face inextricavelmente inseparável. Assim se lê nesse belo texto introdutório de Aparição: «a minha presença de mim a mim próprio e a tudo o que me cerca é dentro de mim que a sei – não do olhar dos outros. Os astros, a Terra, esta sala, são uma realidade, existem, mas é através de mim que se instalam na vida: a minha morte é o nada de tudo».
Esta passagem, assaz elucidativa da trama vergiliana, centraliza-nos em dois pontos essenciais: 1. a dialéctica exterior/interior – eu/outro; 2. a dialéctica sujeito/objecto. A primeira fala-nos do centramento do “eu”, do “eu” como espelho de si próprio que prescinde, embora não negue, da relação com a alteridade, para atingir a sua própria interioridade e o seu próprio auto-conhecimento. Apela, numa palavra, para a consciência mais profunda da pura interioridade na sua absoluta diferença e irredutibilidade em relação ao outro:
«quantas vezes nos dizem pergunta Vergílio Ferreira que um “eu” é uma ficção? Que só tarde um “eu” foi descoberto pelo homem? que ele é uma construção causal exterior? Que esse “eu” não existe senão porque no-lo inventaram?», para concluir, provisoriamente, que: «Não é pois uma ilusão esse “eu”, essa presença categórica e terrível que se levanta em nós. Não é uma ilusão nada do que se nos imponha flagrantemente e que está antes da razão o vir discutir» . Porque, afinal, «que é um “eu”? E desde quando foi possível ter consciência desse “eu”? Que modalidades tomou essa consciência? Que há de ilusório nisso mesmo, justamente por isso?»
O que poderemos dizer do “eu”, da “consciência” (conceitos que, sem suficiente problematização, o autor apresenta como sinónimos), nós seres finitos mergulhados num mundo imenso, povoado por múltiplos entes igualmente portadores da mesma finitude? Sabemos, apenas, e segundo os dados da fisiologia – invocados pelo autor – que, não obstante todas as dúvidas e hesitações, separamo-nos das coisas num instante infinitesimal e assim confusamente esse “eu” se anuncia em nós, nesse mesmo instante infinitesimal que é um instante infinito.
Porém, a breve separação que nos deslocou do mundo teve, desde o início, a dimensão da nossa divindade. Separarmo-nos das coisas significa apenas: sabermos que elas existem, mas que as não somos; que existimos em face delas, mas que somos em separado; que quebramos o momento inicial do sincretismo e que, por isso, enquanto entes à parte, carregamos o terrível peso da auto decisão, de decidirmos de nós. E, assim, o homem se cumpre mais como homem, segundo a distanciação do horizonte que instaura como limite. É o próprio da sua condição humana, que é uma condição, inevitavelmente, metafísica: «Porque a sua dimensão humana é a dimensão do que o transcende, o amplia para além de si» .
Na sequência da primeira dialéctica, a segunda remete-nos, a um tempo, para a autonomia do sujeito relativamente ao conjunto de objectos familiares que o cercam e ao universo. É explicitamente afirmada a auto-suficiência do sujeito, cujo fundamento ôntico-ontológico emerge sempre como irredutível, porque separado do reino das coisas e do reino dos animais. Ou, por outras palavras, Vergílio Ferreira aponta para uma auto-suficiência ontológica do sujeito não apenas enquanto ser vivente, existente ou conhecente, mas como o fundo sem o qual as coisas não existem senão enquanto existem para si mesmo, para esse sujeito que as instala em vida.
No entanto, a relação entre os dois pares dialécticos pode tornar-se menos harmoniosa, ou até mesmo contraditória, se atentarmos noutras passagens de Invocação ao Meu Corpo, onde o autor afirma que «um “eu” não nos existe, porque o que existe são as coisas».
Surge, assim um terceiro ponto, uma terceira dialéctica, tão marcante do pensamento de Vergílio Ferreira quanto as anteriores: a dialéctica nada/tudo – morte/vida. A morte é agora definida como «o nada de tudo», expressão que traduz, em última instância, a tese central do autor acerca da problemática da morte nessa sua relação umbilical com a vida.
Todavia, o homem é nada e tudo ao mesmo tempo, pois dispõe, em uníssono, do poder da vida e do mistério da morte. Mas, «como é possível?», pergunta ainda Vergílio Ferreira, mantendo-se nessa postura de eterno questionador que se confunde com a sua própria vida e com o seu estar perante a morte.
O mesmo homem que, afinal, se conhece no Deus que recriou o mundo e que o transformou, que mora na infinidade dos seus sonhos, ideias e memórias realizadas em si mesmo, como um prodígio de invenções e de descobertas, cujo conhecimento pertence apenas a si próprio, bem como a re-criação que fez de tantas coisas belas e inverosímeis, sempre à imagem de si próprio.
É agora a imagem especular de Vergílio Ferreira que assoma, que se ergue no seio de tudo isto, qual ser ao mesmo tempo ensimesmado e presente no mundo, nesse mundo onde se ri e onde se chora, nesse mundo de alegria, embora breve, de tristeza e de amargura e, por vezes, de felicidade e de esperança; nesse mundo que é o lugar de todas as epifanias, de todas as aparições, do nada absoluto, do ser silente, do silêncio e do mistério.
Este mundo, envolto na sua própria complexidade e con-fusão, é o próprio mundo do escritor, um mundo amealhado com o seu próprio suor e com o sangue que o aquece, sentido até à vertigem. Será o mundo «do nada absoluto, dos astros mortos, do silêncio»? Não! Este raciocínio – sempre feito em primeira pessoa, sempre apresentado por um sujeito solitário, cuja vida se move entre as paredes da sua interioridade e o espaço infinito do mundo – não é senão uma falácia, porque «a sua evidência é um milagre instantâneo». No entanto, «a lua subiu ao céu quente, a sua água escorre-me agora pelo corpo. Lavo nela as minhas mãos e é como se purificasse num tempo anterior à vida, num luminoso alo de coisas por nascerem. Súbito, neste silêncio mineral a porta da sala range (...)» e «ao fim de muitos anos aprendemos a verdade, na aparição da graça, num limiar de presença, antes que sobre a Terra fosse pronunciada a primeira palavra» .
Deus gastara-se-lhe, mas, no entanto, continuamos a ser homens. Não somos nem deuses nem pedras, nem anjos. Se a grandeza que nos coube foi essa, conquistemo-la até onde, nos limites das evidências primeiras, ela se nos anuncia. E se o absurdo é a face desses limites, assumamo-lo como quem não rejeita nada do que ainda é em nós próprios. A cobardia não reside em assumir esses limites, mas em recusá-los, como também não está em reconhecer uma doença, mas em fitá-la de frente. Só se é justo, corajoso, pela assumpção consciente do que nos ameaça.
Vergílio Ferreira advoga, ao contrário do que pretendem os seus detractores, «um pouco de humildade, uma íntima nudez». Encontrava-se com o minimalismo de certos pormenores, porque sabe que o milagre pode surgir quanto menos o suspeitamos.
O mais simples dos acontecimentos pode alvoroçar-nos como a mais pura e evidente aparição de beleza. Por isso, lidou com a vida com a exorbitância do mistério, convicto de que «há em nós um segredo que nós mesmos não sabemos».



Isabel Rosete

domingo, 10 de janeiro de 2010

Em homenagem a Vergílio Ferreira, por Isabel Rosete




Escrevo até à exaustão do sentir. Em cada noite que permaneço em estado de alerta, acompanham-me as Estrelas, a Lua, a Chuva, as Tempestades, o Silêncio que a Paz me traz e a lucidez do meu Espírito engrandece. As palavras sempre fluem… soltas, dispersas ou conjugadas.
O sono teima em não chegar perante essa ânsia incontrolável do pensamento que quer ser dito, da voz que se quer erguer no sossego dos orbes celestes.
Tudo é fonte de inspiração. Tudo impele ao mais simples e singelo acto do Dizer. Todo o pensado deve ser dito! Tem que ser dito!
O pensamento comanda a mão que, tremulamente, escreve. Um pensamento redondo que, jamais, se quer conter no seio dos limites esferoidais da circunferência que o envolve. As ideias rodopiam. Tornam-se visíveis. Mostram-se ao Mundo.
O meu pensamento não quer calar mais a sua voz. Grita, expande-se, exterioriza-se. Com outros pensamentos pretende entrecruzar-se e recolher a mais nobre seiva de outras mentes, monadologicamente conjugadas, com portas e janelas viradas para o Aberto do esplendor da Criação.
O Pensamento é a mais singular das lentes de observação do Mundo. Em si mesmo, todos os pormenores pode acolher. Dentro de si, todas as essências pode recolher.
Sem limites, navega, o meu pensamento. Sempre na inquietação de percorrer todos os mundos possíveis, determinado por um sentido universal e universalizante. Quer abarcar o Todo, sem deixar nada de fora.
Aos insondáveis mistérios se dirige com uma curiosidade infinita. Os segredos do Universo quer desvendar, não para o manipular, mas para o salvaguardar da escassa originariedade que ainda lhe resta.
Não se desfaz no quebrar das ondas, nem na alternância das marés. Permanece, aí, convicto da sua missão: observar e dizer o Mundo, ritmicamente, sem má fé, sem pré-conceitos. Com racionalidade, sensatez e originalidade.
Tudo dentro de mim. Nada fora de mim. Eis o lema que, sempre, me persegue. É megalómano? Sem dúvida… quiçá… também…! Não sei…!

Isabel Rosete