terça-feira, 27 de setembro de 2016
BIRD Magazine: VERGÍLIO FERREIRA N’OS CAMINHOS DA INTERROGAÇÃO, por Isabel Rosete
BIRD Magazine: VERGÍLIO FERREIRA N’OS CAMINHOS DA INTERROGAÇÃO: «Mas porque custa tanto encontrar o caminho? Tantos se perdem (...) Caminhos ásperos, difíceis, os deste mundo. E a gente pisa-os tant...
segunda-feira, 4 de abril de 2016
BIRD Magazine: CELEBRANDO OS 100 ANOS DO NASCIMENTO DE VERGÍLIO F...
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sábado, 9 de abril de 2011
CURSOS MIL – por Isabel Rosete, Vergílio Ferreira. Ainda está a tempo de se inscrever
Urge lembrar e celebrar os grandes literatos e pensadores portugueses, vivificar a nossa Cultura e solidificar o nosso saber com os grandes homens que etermizaram a Língua e a Alma Lusa. Este é um dos objectivos centrais deste meu curso sobre Vergílio Ferreira (programa abaixo) que estou a leccionar no âmbito dos Cursos MIL (Movimento Internacional Lusófono), na Sociedade de Língua Portuguesa.
CURSOS MIL – por Isabel Rosete
VERGÍLIO FERREIRA: NA FACE DO MISTÉRIO, O PENSAMENTO E A VOZ DO SILÊNCIO
«Há o ódio e o sonho e a inquietação do nada. O enigma, o absurdo. O não sei quê que perdura como a fome que volta sempre. O mistério que renasce do que o resolveu. E a beleza. A que vem depois de todas as coisas belas. Elas envelhecem, o acento da beleza noutro lado. Mesmo Deus retira-se para além de Deus. A procura intérmina ofegante. Silêncio.», Vergílio Ferreira
1ª Sessão: Traços de um pensamento e as vozes do silêncio
1. Entre o silêncio, a morte e o enigma do Eu
2. A obra como escrita da vida ou escrita do silêncio
3. O novo humanismo: o lugar da infância e a instauração de uma poética do humano
4. No caminho da interrogação: o olhar preconceptual
2ª Sessão: Uma escrita, uma época e a revelação do destino historial do homem
1. Nos limiares da revelação: o espanto originário como fonte da criação
2. A atmosfera literária e ideológica contemporânea e a escrita vergiliana
3. Uma sensibilidade pós-moderna
4. Uma escrita existencialista
3ª Sessão: A problemática do romance – II
1. Destino e morte das palavras: fala e silêncio
1.1. A palavra como essência do pensamento e o pensamento poético em detrimento da vacuidade do discurso
1.2. A dimensão ontológica da linguagem como meio de hominização do mundo
2. O fim do romance ou do romance viável: sob o signo da mudança
4ª Sessão: A problemática do romance – II
1. Do romance-espectáculo ao romance-problema
2. O tratamento romanesco do tempo
Isabel Rosete
CURSOS MIL – por Isabel Rosete
VERGÍLIO FERREIRA: NA FACE DO MISTÉRIO, O PENSAMENTO E A VOZ DO SILÊNCIO
«Há o ódio e o sonho e a inquietação do nada. O enigma, o absurdo. O não sei quê que perdura como a fome que volta sempre. O mistério que renasce do que o resolveu. E a beleza. A que vem depois de todas as coisas belas. Elas envelhecem, o acento da beleza noutro lado. Mesmo Deus retira-se para além de Deus. A procura intérmina ofegante. Silêncio.», Vergílio Ferreira
1ª Sessão: Traços de um pensamento e as vozes do silêncio
1. Entre o silêncio, a morte e o enigma do Eu
2. A obra como escrita da vida ou escrita do silêncio
3. O novo humanismo: o lugar da infância e a instauração de uma poética do humano
4. No caminho da interrogação: o olhar preconceptual
2ª Sessão: Uma escrita, uma época e a revelação do destino historial do homem
1. Nos limiares da revelação: o espanto originário como fonte da criação
2. A atmosfera literária e ideológica contemporânea e a escrita vergiliana
3. Uma sensibilidade pós-moderna
4. Uma escrita existencialista
3ª Sessão: A problemática do romance – II
1. Destino e morte das palavras: fala e silêncio
1.1. A palavra como essência do pensamento e o pensamento poético em detrimento da vacuidade do discurso
1.2. A dimensão ontológica da linguagem como meio de hominização do mundo
2. O fim do romance ou do romance viável: sob o signo da mudança
4ª Sessão: A problemática do romance – II
1. Do romance-espectáculo ao romance-problema
2. O tratamento romanesco do tempo
Isabel Rosete
terça-feira, 11 de janeiro de 2011
«VERGÍLIO FERREIRA, A OBRA COMO ESCRITA DA VIDA OU ESCRITA DO SILÊNCIO: AO ENCONTRO DE "QUEM É O HOMEM?"»
Por Isabel Rosete
A desesperada procura de uma forma última pelos escritores, os de ontem como os de hoje, revelou-se sempre como um modo de forçar as fronteiras do dizível: se o texto significa a conquista de novas realidades, fala-se de sonho, se o texto se assume como uma fala própria, remete para o silêncio. Mas que silêncio se tudo, afinal, é uma questão de linguagem, e não só desta língua portuguesa, que como outras foi criada em Babel para lançar a confusão no mundo? Será o silêncio a última expressão de um conflito com a língua? Teremos que proceder a uma discussão sobre o problema da resistência que oferecem as fronteiras da língua?
Os escritores, os poetas, os filósofos, são levados às últimas consequências deste desafio. E por esta via se renova a tentativa de ir de encontro ao apelo da metáfora, que vale agora, já não pela sua capacidade integradora, mas por querer apelar directamente ao Ser das coisas, apesar das sombras que sempre assomam. O escritor, Vergílio Ferreira, quer falar para além fronteiras, atravessar as fronteiras por cada palavra. E mesmo que uma saudade a apague, a palavra sintoniza-nos com cada lugar. O momento desta fractura é ele mesmo o mergulho no silêncio que gera a metáfora como fórmula a recordar.
Digamos que quem escreve dispõe de fórmulas numa memória, de maravilhosas “palavras antigas”, das palavras originais para uma pedra ou uma folha, por exemplo, ligando-se ou explodindo em novas palavras, novos sinais para a realidade, perante a decadência de todos os valores e a degeneração da própria linguagem. E quem cria estas fórmulas mergulha também nelas com a sua respiração, que vale como prova não exigida para a veracidade dessas fórmulas.
Mas que imagens nos trazem essas fórmulas para o entendimento da Vida? Quando começa a sua liberdade? Ou quando começa o seu despotismo? Onde podemos encontrar a sua capacidade de nos fazer comungar vivências?
Vergílio Ferreira instala, de certo modo, o seu radical programa de silêncio e de mal-estar, em virtude dessa insuficiência da linguagem para dizer o mundo, os sentimentos e a Vida, sempre marcado pelo desassossego, pela inquietude, perante a crise axiológica do seu/nosso tempo, a queda dos mitos , a crise de identidade da sua/nossa geração. E para que nos servem as fórmulas? Para que nos servem as palavras no seio desta realidade sem identificação? Esta realidade que é sempre um outro de si mesmo?
Tudo se desfaz em pedaços, os pedaços novamente em pedaços e nada se deixa abranger por um conceito. As palavras abstractas de que a língua se serve naturalmente para qualquer juízo, despedaçam-se como cogumelos podres. De um lado temos a fugacidade das vivências e, por outro, a estagnação passiva das “fórmulas feitas”, que não cabem nessa escrita de vivência, nessa escrita da Vida que é a escrita de Vergílio Ferreira.
Sabemos com o autor que o mundo é composto por factos completamente independentes uns dos outros, que as frases universais são impossíveis, que as frases da lógica não passam de "puras tautologias". As únicas frases que fazem sentido são as frases da experiência, as frases que emergem da Vida, da nossa Vida concretamente vivida, as frases que correspondem aos factos do mundo.
Como refere a este propósito o poeta Ingeborg Bachmann, em O Tempo Aprazado, «deste lado das “fronteiras” estamos, pensamos, falamos nós. A sensação do mundo como um todo delimitado é-nos sugerida porque só, enquanto sujeitos metafísicos, não somos já parte do mundo, mas sua “fronteira”. O caminho através da fronteira, porém, foi-nos vedado. É-nos impossível situarmo-nos fora do mundo e proferir frases sobre as frases do mundo (...). Por isso (...) não há frases éticas, porque uma frase nunca pode exprimir nada de superior. (...) Nada do que a língua é capaz de exprimir – os factos do mundo, portanto – é alterável pela vontade. Alteráveis, só as fronteiras do mundo, e sobre elas temos de nos calar» .
Submeter-se ao silêncio talvez seja a alternativa mais adequada para o homem de bom senso, ou ainda dispomos da possibilidade de encontrar uma “nova linguagem” para o romance, para o ensaio ou para a ficção, uma linguagem aquém das “fórmulas” e pela qual possamos dizer o Mundo? E que “nova linguagem” será esta? Quiçá uma linguagem que resulte menos da procura de originalidade (sem prescindir do originário) do que da necessidade de se formular constantes?
Digamos que esta tomada de direcção, este ser-se atirado para uma via na qual se cresce e se morre, na qual já não há lugar para o acaso de palavras e de coisas. Vergílio Ferreira desenvolve uma consciência “oblíqua” do Mundo que atravessa momentâneos estados de iluminação pela palavra. Em cada acto de escrita, há como que uma imitação daquela linguagem por nós pressentida, mas da qual não podemos apossar-nos totalmente. Possuímo-la como fragmento, na escrita, concretizada numa linha ou numa cena, e compreendemo-nos nela, respirando fundo como se estivéssemos chegado à linguagem originária que podemos escutar aquém das «vozes do silêncio», de que falava Malraux, advertindo-nos para a necessidade de considerarmos a palavra antes que ela seja pronunciada, o fundo do silêncio que não cessa de a envolver, o silêncio sem o qual a palavra nada diz.
A obra Para Sempre (1983) constitui-se como a grande apologia do silêncio, essa outra fala que nos resta para além das palavras já gastas, para além da vacuidade da linguagem escrita ou falada. Vergílio Ferreira anuncia e comprova essa denúncia, cada vez mais evidente nestes tempos hodiernos onde a “arte da palavra” se constitui no próprio vazio, no corte da lógica e da significação. Por isso escreve nessa magnífica obra: «Sento-me à varanda – aqui estou. Vida finda. Mas não perguntes. Sonhos, lutas, e a obsessão do enigma – não perguntes. E do que o ordenasse ao universo – não penses. A palavra ainda, se ao menos. A palavra final. A oculta e breve por sobre o ruído e a fadiga. A última, a primeira» .
E o silêncio assoma. O silêncio que estala no ar branco e perante o qual os pássaros se calam na sombra das ramadas. «Só de vez enquando, vem de longe, dá a volta pelos montes, uma voz canta pelo ermo das quintas. Ouço-a na minha alegria morta, na revoada da memória longínqua, escuta-a. E é como se mais forte que o cansaço e a ruína, do lado de lá da amargura, é a voz da terra, da divindade do homem» .
O presente está só, desamparado. Sabêmo-lo bem. Mas a memória erige o tempo. Sucessão e engano correspondem, apenas, à rotina do relógio. Por isso é que esse rosto que vemos nos desgastados e escuros espelhos não é o mesmo. O hoje fugaz é ténue e é eterno. Não vale a pena procurar um outro Céu ou um outro Inferno. «Para sempre. «Aqui estou», escreve Vergílio Ferreira, quando (...) «uma voz canta não sei onde», uma voz que se ergue «sobre o silêncio da terra» .
Vergílio Ferreira permanece aí, no «jardim imóvel do silêncio», onde nada o olha nem lhe fala, embora procure ouvir a voz que canta no silêncio em redor. Sempre «na aprendizagem serena do silêncio», num «silêncio súbito», o «silêncio da terra». Só ouve as «vozes ermas dos campos», no «calor parado da tarde». Tudo o resto é supérfluo. Só encontramos a «palavra seca reduzida, ao essencial da agressividade».
E ouvimos o mesmo imperativo de sempre, o imperativo do silêncio, sobe várias formas ou expressões linguísticas, dessa denúncia do puro linguajar, da tagarelice, da vacuidade das palavras sistemática e aleatoriamente ditas, das palavras e dos discursos despidos da sua significação originária, ou se preferirmos, do seu enraizamento ontológico, quer dizer, ausentes da palavra originária que diz Ser, que remete para o Ser: «Ah, e se te calasses? «Tu falas tanto»; «Estejam calados, estupores!»; «Estai calados, desgraçados!», profere o autor respectivamente a Xana, aos políticos e aos filósofos. Ou, ainda, «Ide todos à merda!», quando se refere aos moralistas. «Para a puta que vos pariu!», é a sentença que o autor profere, em nome do silêncio, aos pregadores da religião.
E o que diremos dos artistas? « Espera. Faltavam agora ainda estes, os artistas. Que é que vós quereis, meus bardamerdas?» . Esses querem apenas dizer coisas. Desvairam aos gritos. Os pretensos homens da cultura não se entendem, tal como os políticos ou os arautos da religião. E no final de contas, defendem tão-só o regresso às formas poéticas de base que um jocoso qualquer crismou de parolice e, não obstante, discutem todas as correntes contemporâneas – “cubismo”, “faubismo”, “neoplasticismo”... – mas em nada dignificam a arte, essa actividade mais nobre do homem. Cerrar os ouvidos a tamanhas confusões ideológicas, discursos vazios e a indecorosas posturas artísticas, regressar, de novo, ao silêncio é, seguramente, a atitude mais sensata. E o que lhes resta é ir «berrar para as profundezas do Inferno» .
No entanto, e seguido pelas «vozes do silêncio», o que Vergílio Ferreira pretendeu, em toda a sua vida de literato pensador, traduz-se nesse desejo inquietante de transmitir, pela linguagem, uma ideia de mundo, conjuntamente com as próprias inquietações que o mundo suscita através do romance. O romance é isso mesmo: a imagem de uma época ou a sua representação literária, uma certa visão do mundo e da vida que o artista põe em obra e torna publicamente acessível.
Ora, os escritos de Vergílio Ferreira foram perpassados, à semelhança da generalidade das obras suas contemporâneas, pelo “neo realismo”, um acontecimento fundamental para o meio artístico cultural, tão fundamental como a Guerra, segundo as próprias palavras do autor, que se integra nesse movimento, que não é senão aquilo a que poderíamos chamar «arte social».
Trata-se de uma forma de ser da arte, de um movimento ou corrente artística plenamente comprometida com as questões socio-económicas, comprometimento que faz esquecer aos seus adeptos a natureza específica da própria arte. Aliás, a arte de compromisso traduz-se nisso mesmo: no esquecimento de que uma obra de arte é antes de mais uma obra de arte e, portanto, só pode estar comprometida com o seu tempo e não com qualquer tema aleatoriamente apresentado, ou imposto pela ordem culturalmente instituída. Aliás, «um romance só existe pelo que lhe é específico e lhe confere eficácia. Assim o que o determina como obra de arte se há-de esclarecer desde o tema».
Mas, de onde partiu, afinal, a postura “neo-realista”? Do princípio segundo o qual a literatura, o romance, que na época eram conceitos sinónimos, poderiam colaborar num projecto mais vasto, cujo lema fosse a transformação da sociedade e do mundo. Esta ideia ou necessidade imperiosa de mudança tornou-se uma crença absoluta, também ela sujeita à transformação ou metamorfose pela queda, ou em virtude da queda do grande “mito do século”, da destruição daquilo que é para o nosso autor o grande acontecimento do nosso tempo: o “mito comunista”.
Sucedâneo de mitos anteriores, o “mito comunista”, o comunismo universalizante, que não se preocupava apenas com determinados sectores da vida, mas com todos, instituiu-se como uma espécie de religião privada, uma axiologia determinada que abalou certos modos de estar e colocou em suspenso grande parte das consciências.
E que mitos assomam, hoje, nesta sociedade absolutamente tecnicizada? Ainda acreditamos em mitos pelos quais pautamos as nossas condutas e forjamos as nossas ideias? Que valores veiculamos hodiernamente? Afinal que mudança se opera ou se operou? Que mudança esperamos nós, ansiosos pelos tempos vindouros, talvez na esperança de uma vida e de um mundo mais moldado aos nossos anseios? Esperamos a verdade nunca revelada? Ou perdemos a memória e todo o passado das construções dos homens? Ou seguiremos esse exemplo magistral de Vergílio Ferreira que rompeu com o mito imposto pela sua época, com a mundivisão que veiculava? Vergílio Ferreira, agnóstico - a quem a verdade se revelou, tanto quanto ele mesmo - pode-a aceitar e conceber.
A obra que Vergílio Ferreira nos deixou é, a um tempo, o testemunho de uma vida singular e universal: «Toda a obra que eu escreve, refere o autor, tem a ver com a minha vida, suponho eu» . (...) «Tudo tem a ver com a minha vida. Um livro, ao fim de contas, é um resumo da minha vida, das minhas obsessões, das minhas preocupações»
Mas a que obsessões se refere o autor que fala sempre na primeira pessoa, como se fosse em cada romance ou cada ensaio, todas as personagens e o narrador ao mesmo tempo, o autor que parece escrever porque é vital, porque é absolutamente fundamental dar a conhecer aos Homens o que na sua alma encerra, essa alma do tamanho do mundo onde cabem todas as almas dos Homens? Que preocupações são essas que assomam em cada obra, no seu rosto e em todos os rostos que são o seu, esse rosto já enrugado e marcado pela vida que se reflecte especularmente em cada acto de escrita?
Para que possamos alvitrar uma resposta adequada a estas questões, é necessário atentar, pelo menos, numa das suas obsessões fundamentais e, quiçá, mais constante: a via da permanente indagação que perpassa este espírito sempre em estado de estranheza, de espanto, de inquietude e de dúvida. Toda a existência do escritor não foi senão um acto prolongado, durante a qual não cessou de se interrogar sobre o Destino (o seu destino), com uma consciência, por vezes penosa, da máxima lucidez, sobre tudo que lhe ocorre na Vida e sobre o modo como o mundo é para si próprio.
A vida que encerra a significação máxima em si própria e jamais em nada do que eventualmente a possa exceder. Digamos que perante a recusa da transcendência, que é o que está em causa na afirmação do valor absoluto da vida, a vida emerge como o único valor, como o valor supremo a que toda a escala axiológica deve estar subordinada. Esta é precisamente a principal obsessão do autor em Alegria Breve (1965).
Nesta obra, Vergílio Ferreira cita Sófocles. Cita-o, mesmo antes de começar o livro, os mesmo versos do famoso segundo coro de Antígona, a partir dos quais Heidegger tentou determinar «Quem é o Homem?», interrogação que destrona aquela que nos habituámos a pronunciar, incessantemente, desde Aristóteles – «O que é o homem?» , e para a qual obtivemos sempre a mesma resposta: «O homem é um animal racional» (“etiqueta” que transportamos há séculos na nossa fronte), constituindo a Razão, o Intelecto, a sua diferença específica.
Vergílio Ferreira sabe tão bem como Sófocles, Hölderlin ou Heidegger que: « ». Os termos a destacar aqui, são e , em virtude das respectivas traduções alterarem não apenas o conteúdo semântico dos versos, mas todo o desenvolvimento da tragédia sofocleana e, em particular, a concepção de homem que possamos adoptar ou desenvolver.
De facto, as traduções destes versos são várias e nunca unívocas . Vergílio Ferreira translitera-os do seguinte modo: «Há muitas coisas espantosas (), mas nada há mais espantoso () do que o homem» . Estes versos são o ponto de partida, quiçá o fio condutor, de Alegria Breve, onde o escritor sente o silêncio que cresce à sua volta, desde a montanha que fica a olhar até lhe doerem os olhos. Apresenta-se como um homem só, horrorosamente só e evoca, mais uma vez, Deus, o único que pode compreender essa solidão e ao mesmo tempo o sofrimento que dela decorre. Toda a solidão do mundo entrou dentro de si. Apesar, do seu «orgulho triste, inchado», é o Homem, que do desastre universal se ergueu, no seio do silêncio, enorme e tremendo.
E quando ouve o silêncio, sente-se, «aí, disperso irrisado em espaço, íntegro e puro. E nu.» . Todavia, atira uma «patada violenta» para tomar posse do mundo, e sabe, então que é ele próprio, o Vergílio Ferreira, que sente e escreve tudo isto: «Atiro a minha patada violenta, respiro até aos ossos o universo», apesar do trémulo olhar de lágrimas, a solidão ancestral, o frio da noite, «adstringente e nulo».
Sempre restrito em si nota, tão-só, a sua pequenez perante o universo, que é tão grande, face à sua insuficiente divindade. Mas está aí, pequeno e medroso, pensando às vezes: «sentar-se aqui (com os pés a doer por causa do frio), morrer aqui» . Outras vezes grita e julga endoidecer, ao mesmo tempo que quer alcançar a «paz da terra» que sempre procura: «Quando fico só na aula, com todas as janelas abertas, às vezes cerro os olhos, respiro fundo, e a paz da terra é tão funda que encontro a cabeça à secretária e choro. Depois reparo que não chorei. Tenho uma alegria excessiva como quem vai suicidar-se» .
Porém, um aroma intenso, imóvel e de eternidade move-o a percorrer esse caminho de indagação de que nunca se separa, procurando também o homem, o ente mais espantoso entre as múltiplas coisas espantosas. E como todos os outros homens, sabe que a paz é sua porque a percepciona, porque resiste à agonia e está vivo. A confiança emerge: «sem dúvida o resultado era imprevisível, porque muitos caminhos partiam daí e eu podia rir com um riso canino, ou andar aos gritos pela vida, ou chorar à espera de resignar-me, ou olhar apenas de olhos enxutos e esperar as flores novas sob o túmulo dos mortos, ou. Estou vivo. A terra existe. Eu sei-o.» . Por isso, pode entrar e sair por todas as portas da vida, mesmo que permaneça só, mesmo que lhe seja impossível gritar, mesmo que o grito se lhe entale na garganta e o mundo recue para uma estranheza absurda.
É preciso abrir os olhos e ver totalmente para aguentar o impacte da Vida e vencê-la, mesmo que seja necessário recuperar a vida desde as raízes mais profundas, obscuras ou verdadeiras. E se por mero acaso a vida for uma invenção, esqueçamos tudo, e reinventemo-la desde o início. É o único caminho que nos afasta do envenenamento para sempre . Há, por vezes, uma música ignorada que vem de longe e que cresce no âmago da alma, à semelhança de um aceno humilde, mas que, no entanto, faz tremer os olhos. É uma música suave que sobe pelo corpo todo, mesmo sendo tão ilícita, mesmo apertando o pescoço como a uma criança.
No seio da ternura que emerge de vez em quando, não obstante os olhos trémulos e o pescoço apertado, esse sentimento tão difícil de se atingir na sua plenitude, o que comove o autor é a constatação de que o homem pode subir tão alto, embora as suas raízes nunca subam, tal como as das árvores, porque «estão na terra, para sempre, junto da infância e dos mortos» .
Mas o homem é, no entanto, o mais espantoso () das criaturas. O mais maravilhoso (), ou ao invés (ou quiçá simultaneamente) o mais terrível () e o mais inquietante (), o mais estranho (), o mais violento () e o mais monstruoso (). O homem é concebido assim mesmo: na sua inquietante estranheza inicial, estranheza de si próprio, do mundo e da Terra que desbrava com a ajuda dos arados, mas que não salvaguarda mais, segundo a visão original de Sófocles que aqui confrontamos.
Para além destes significados atribuídos ao termo grego (/), outros devem ser, ainda, salientados para completarmos a nossa análise etimológica, a saber: a) Hölderlin (principal influenciador da interpretação/tradução heideggeriana e hodierna) e Brecht, refere G. Steiner, em Antígonas , traduzem por «o que é misterioso», «o que é estranho», «o que é monstruoso» ou «inquietante» no sentido do significado do termo alemão «Unheimlich», expressões/conceitos endogenamente familiares ao universo romanesco filosófico de Vergílio Ferreira que gira basicamente em derredor da inquietude decorrente desse estado de interrogação, de dúvida, de mistério e de estranheza permanentemente presentes no seu espírito, sempre preocupado com o estado o Mundo e o modo de ser do Homem perante o Mundo e o Destino (como temos vindo a salientar ao longo do presente trabalho); b) R. Otto, em O Sagrado , sugerindo-nos que traduzamos (relativamente ao qual é o adjectivo comparativo), por «desmedido», «enorme», «excessivo» e «extraordinário», conduz-nos a conceber como algo que «ultrapassa toda a medida pela sua natureza ou proporções», como aquilo que entra no domínio da estranheza e da desmesura. Assim interpretado, , observa o autor interpretando Goethe, apresenta-se como o «monstruosamente inquietante e o monstruosamente terrível».
A consonância do conjunto de ideias expostas com o pensar de Vergílio Ferreira em Alegria Breve , parece-nos notória, quando o autor fala do homem que se encontra horrorosamente só e em estado de sofrimento, no qual toda a solidão do mundo penetrou. O homem eivado de um orgulho triste, o homem que do desastre universal se ergue, enorme, para depois permanecer, trémulo, no mais profundo silêncio do mundo e, neste sentido, é «Unheimlich», não se apresentado somente como o «mais inquietante, mas quiçá, e de uma forma mais radical, como o «fora-do-Ser», o «fora-de-casa» e, a limite, o «fora da identidade», tal como sugere explicitamente Heidegger e como se pode ler, de uma forma, menos explícita, na escrita de Vergílio Ferreira, não somente no romance supra citado, mas também em Invocação ao Meu Corpo ou em Até ao Fim (1987). É, ainda, essa mesma figura de homem, desenhada nos contornos deste contexto, que transporta a mulher num lençol, já morta, e que a Terra exige com violência, que ouve o silêncio, que se sente disperso, irrisado em espaço e, ao mesmo temo, íntegro e puro, qual Antígona ressuscitada.
É, ainda, esse mesmo homem, Vergílio Ferreira, a Humanidade, que já sentiu que o mundo estava a desaparecer diante de si, que tentou vencer o muro da morte para lhe encontrar significação. A morte de que sempre se tem medo, ou, pelo menos, se guarda respeito. A morte, esse outro enigmático e intrigante, assombrosamente desejoso e fascinante. E se a morte real nos apavora, mesmo que pensemos apenas na morte dos outros, somos inevitavelmente atraídos por ela quando a entendemos noutro contexto, quando a vemos de outro modo: como ficção.
Mesmo quando passamos para este nível de contextualização, a morte (a nossa ou da do outro) é sempre uma interrogação (embora seja ao mesmo tempo a única certeza absoluta de que dispomos, porque não é contingente ou relativa, mas categoricamente implacável), e as interrogações não têm resposta, a não ser numa religião, na sacristia, no confessionário ou num partido político.
Isabel Rosete
Janeiro de 2011
sábado, 8 de janeiro de 2011
«O NOVO HUMANISMO: O LUGAR DA INFÂNCIA E A INSTAURAÇÃO DE UMA POÉTICA DA EXISTÊNCIA EM VERGÍLIO FERREIRA»
Por Isabel Rosete
O sentir, os sentimentos que em nós o mundo desperta, reside no homem, sempre à flor da pele, mas também acima de si mesmo, evocando uma necessidade de transcendência do “eu” que parece não caber dentro da sua própria esfera; não como uma contingência, mas como uma necessidade, tão básica e tão preciosa como a própria existência.
Por isso, «não houve lua em toda a noite e foi pena. Fazia-me bem ao sentimento um pouco de melancolia. Não tenho melancolia, eu. Também não tenho nada para em vez dela. Raiva, desespero, qualquer porcaria assim. Qualquer que estivesse acima de mim e me tomasse à sua conta. Estou metido no meu tamanho e assim é mais difícil de aguentar, porque tenho de domesticar o que é maior do que eu. De vez enquando naturalmente há a pressão. E então há a tentação de me deixar ir. Não vou. Olho à volta e tudo é grande e cabe lá tudo o que em mim é demais» .
Mais do que uma poética da prosa, em Vergílio Ferreira verifica-se uma poética do espírito, ou, se quisermos, uma poética da existência. Mas o que há é, sobretudo, uma poética do humano. É inarredável do seu espírito criativo um humanismo absoluto, mesmo quando tomamos contacto com o seu ensaísmo ou com a sua obra ficcional. É também aqui, nesta dimensão da palavra igualmente criativa, que se afirma o espírito de criador total.
É, ainda, essa Palavra infinitamente criadora que nos revela essa preocupação sistemática em pensar o homem, na sua humanidade; o homem, o que existe de mais espantoso no seio da existência. Assim o vê o autor quando cita os primeiros dois versos do segundo coro de Antígona: «O homem teve sempre a unificação do tronco e só nos ramos era diversificado e folclórico. Agora é só diverso e como justificar a diferença sem nada em que permaneça? O homem é um jogo de espelhos, com reflexos mútuos e divertidos sem nada do eu seja a reflexão. O homem é a luz de um astro para haver luz e ainda há. O homem é a ficção de si sem nada do que ainda seja ficção – mas malabarismos mentais acabou» .
Para além de todas as considerações, o autor procura uma definição de homem. Importa saber, não apenas “O Que é o Homem?”, questão essencialista que exige uma resposta do tipo “S é P”, que procura, à maneira dos lógicos, uma definição nominal, mas, sobretudo, “Quem é o Homem?”, seguindo a linha existencialista, segunda a qual a figura humana é determinada não tanto pela sua essência, mas pela sua existência. Sabemos que há múltiplas definições de homem, desde a apresentada por Cícero no princípio de todas as reflexões humanistas – «gens nulla tam fera», «tam fera quae non scicat Deum esse» – ou de Aristóteles que o rotulou com a “etiqueta” “ ” e fê-lo carregar o peso da pura racionalidade durante séculos.
Foi responsável pela existência de um Homem marcado pela ausência do sentir, dos sentimentos, que mesmo presentes não são nobres, têm um estatuto inferior ao da razão, continuando a dualidade antropológica determinada desde Platão e assaz acentuada por Descartes e outros mentores do racionalismo.
Mas sabemos, também, que o homem «é um animal que ri, é um bípede sem penas mas antes disso porque só aí começa a ser humano, um animal religioso». Independentemente das definições, torna-se claro para o autor a emergência dessa necessidade de o homem ser humano, não obstante o orgulho e a mediocridade, a sabedoria, a inteligência ou a ignorância, a petulância ou a estupidez.
O que interessa é explicar o mistério da vida, o mistério da vida humana, aquém e além de todas as definições, porque o homem é, para Vergílio Ferreira a sua própria vida: a sua essência reside na sua existência, ou melhor, a sua essência reside no seu próprio modo de vida. E é na infância que encontramos a verdade essencial e indestrutível para a vida inteira, essa verdade guardada na memória que retém todo o passado e anuncia todo o futuro.
O tema da Infância do homem, da infância do próprio autor, surge na escrita vergiliana antes de mais porque é um tema que faz remontar ao mais originário, ao início, à fonte impalpável do sentir. Assoma, naturalmente, desde Manhã Submersa (1988), sendo depois recuperado em muitos dos seus romances posteriores.
A Infância é essa espécie de menoridade mental, uma espécie de primeiro estádio existencial, o primeiro modo de ser e de estar do homem no mundo, onde repousam só aquelas coisas que existem para quem não cresceu.
Vergílio Ferreira não se coloca, obviamente, numa posição psicologista ou psicanalítica, quando escreve sobre a infância, sobre a sua infância, mas numa linha puramente existencialista, que envereda pelo sentido da auscultação das marcas de um “eu” vivente sempre personificado, mas nunca objectivado, que, aliás, perpassa, toda a sua obra. Esse “eu” vivente, nesse primeiro estádio existencial, incorpora em si o excessivo de tudo quando a vida começa, o entendimento do incompreensível, a melancolia de estar só.
«A infância, lembro-me às vezes, escreve Vergílio Ferreira, em Até ao Fim. Lembro-me pouco, é curioso. Possivelmente tem-se a infância do que se é na idade adulta. E não ao contrário. A única coisa que me lembro na idade adulta – será isso ser-se? A única coisa que me coube na idade adulta é aguentar. Aguentar é ser contra o que nos é contra, tudo tem sido tão contra. Mas às vezes, a infância, a adolescência – que é que vem ter comigo desde então?» .
Vergílio Ferreira determina, aquém e além de todas a definições ou problemáticas, o seu grande objectivo para a humanidade:
1. «Retornar à medida humana e está lá a grandeza toda»;
2. «A reconversão ao microcosmos em que tudo está ao alcance da mão»;
Afinal, «o homem é que criou tudo que criou. E ao princípio era ele. O homem só não é o princípio quando é o fim estendido para arrumação». Então já não falamos do homem, mas «do lixo municipal».
Mas Vergílio Ferreira, o narrador, detesta este tipo de figura, de rosto, em que o homem se tornou, pela sua mania do problema, pela mania de entender, por essa obsessão excessiva de ser histórico, «sentado na História como se ela fosse um carro eléctrico» .
E detesta-o, ainda, por trabalhar a um número alto de pulsações por minuto, mas, sobretudo, por se parecer consigo, Vergílio Ferreira, pelo que o repulsa em si mesmo: essa «emoção fácil», esse «vício reflexivo» . O homem é assim mesmo; e o seu «destino é estoirar», a não ser que haja um freio que se lhe coloque, sempre que não pensa como um animal racional, sempre que não tem ideias e viva, apenas, de violência e de inutilidades.
Mas o que podemos dizer, ainda, do Homem? Encontramos ou não, um conjunto de palavras que o possam “definir”, ou pelo menos, determinar os traços do seu ser si mesmo? «Olho as últimas estrelas, mas tudo é falsificação. Que outra definição para o homem? Também gosto de definir. Génio no desemprego, também. Construção aérea de si, imaginário de si. Também. Ser falsificado. É a definição do Homem.»
Essa poética do humano, essa poética da existência, onde Vergílio Ferreira funde, em última instância, o homem e a arte, é anunciada e enunciada em Do Mundo Original, onde o autor reflecte especificamente sobre a arte, sobre o romance, na esteira de Malraux ou de Cassirrer, apontando no próprio destino da arte o destino do homem (tema que desenvolveremos com particular acuidade no próximo capítulo), também claramente enunciado numa obra posterior – Pensar (1992) – onde perguntar pelo futuro da arte torna-se sinónimo do perguntar pelo futuro do homem .
Nesta obra se vislumbra o autor de Espaço do Invisível. Uma vez mais e sempre a questionação das coisas e do mundo, a reflexão em torno da arte e de todas as suas implicações estéticas na sua relação com o tempo.
Desta notável obra ensaística dois livros que ficarão, «para sempre», como um marco notável do ensaio contemporâneo: Invocação ao Meu Corpo e Pensar, estes últimos escritos de acordo com o estilo do seu Diário (a sua obra maior em extensão, pois abrange nove volumes, publicados entre 1800 e 1994).
Pensar, assume já uma dimensão fragmentária, pois é constituído por breves apontamentos de reflexão acerca da vida quotidiana, do país e do mundo, desse mundo que o autor contemplava sem se deixar envolver por ele de um modo directo, mas cujo íntimo sofrimento não era menor por isso. Projecta-se uma vez mais, o autor, nesse Espaço do Invisível, ou seja, nesse espaço metafísico onde só as ideias e o espírito que lhes é subjacente sobrevivem.
De facto, movemo-nos por entre a invisibilidade como quem se move por entre nevoeiro denso. Por ela, a nossa vida verdadeira submerge ao olhar do mundo. Nasce, porventura aí, o nosso sofrimento maior. Talvez a nossa solidão definitiva. Por vezes, a solidão do escritor é um mito, há muito instaurado em certas mentalidades.
Ser solitário é isso mesmo: ser invisível face ao olhar agressivo e violento do mundo, um mundo cada vez mais incompreensível perante cada existência individual. Ao olhar do espírito, a complexidade do mundo assume uma dimensão absurda, pois os caminhos do homem devem procurar a simplicidade. Este será sempre um dos princípios da superior criação: só pela simplicidade poderemos algum dia ser verdadeiramente fecundos.
E apesar de fragmentário, em Pensar, há uma nova compreensão do homem, um novo julgamento acerca da nossa condição de seres viventes no meio social. Mas há, também, uma visão cristalina, como se o autor estivesse a descobrir o mundo pela primeira vez. Sentimos sempre essa obsessão: a procura pelo começo do começo, a busca do inaugural, do absolutamente primeiro, tão fascinantemente presente em Até ao Fim: «Todo o começo é ingénuo e necessário. Toda a esperança está cheia de um deus mortal. Um filho que nasce, uma obra que se inicia. Uma verdade que se ilumina. É a história do homem (...)» .
É preciso ser simples até à origem, até ao elementar e «entender o sinal do início. Do que é gratuito». É preciso regressar às «origens do mundo na terra final desabitada», e tomar nas mãos toda a história do Homem, «desde um dia até um dia», e atirá-la para o mar onde se dissolve na «espuma enrodilhada», dispersando-se no seu rumor. Porque o autor sabe que o «Universo vai começar», ouve-o no «estrondear intenso das águas», como não ser ele aí no começo de si. «E o aroma intenso à vida, à fertilidade, o mar sabe a voz primordial» . Porque, afinal, o que há a nascer não tem memória como é próprio de quem nasceu.
Mas, no entanto, essa visão do homem que é ao mesmo tempo uma visão do começo, da origem, não é desencantada (apesar da aparente amargura de múltiplas afirmações, pois a lucidez é o seu principal atributo. E não há lugar para o desencanto ou para a desilusão, ou, mesmo, para um desânimo fatal.
O autor, continua, “até ao fim”, com a sua tarefa de questionador. E é na própria interrogação que o leitor quase consegue vislumbrar a resposta. Dessa iluminação da palavra, resulta a essência da “genialidade” de Vergílio Ferreira, conceito que utilizamos secundando o conceito goethiano no que respeita ao universalismo da literatura.
Dessa cristalinidade presente em Pensar, obra onde não existe propriamente uma teoria filosófica ordenada, mas um conjunto de reflexões direccionadas numa ideia fundamental, que é, justamente, a defesa do espiritual contra o material, o desejo de ver justiça no, lugar da injustiça, dizíamos que o autor parece descobrir o mundo novamente, como se até aquele momento estivesse adormecido num limbo qualquer.
Se não encontrámos ainda a tão apregoada “maturidade” do escritor, tão discutida pelos críticos, mas que para nós ainda não se tornou um conceito claro, cabe nos abordar onde a capacidade reflexiva se alia à “maturidade” da palavra e no qual o nosso autor explana as principais questões que dizem respeito ao homem, tema central e unificador de toda a sua obra.
Esse livro, Invocação ao Meu Corpo, representa o lugar-limite do pensamento do autor. O corpo de que aqui nos fala, como sendo uma das temáticas fundamentais, não é apenas o seu, mas sobretudo o de todos nós, filhos de uma terra à qual damos o nome e a qual, por sua vez, nos dá o nome. Pelo corpo somos os imediatos questionadores do universo: nada é superior à força divina, mas também nada é superior à nossa imanência.
A circunstância imanente, a condição imanente, material, contingente, mortal, acaba por se tornar um poder na ordem cósmica; somos limitados dentro dos nossos limites: essa é a primeira grandeza do homem. Se assim não fosse seria impensável construir a Civilização; seriam impensáveis o afecto e o amor, bem como a loucura apaixonada dos grandes desafios; em suma, todo o imaginário que nos faz ter apreço pela vida.
O que neste livro é colocado em evidência é o seu humanismo; é a compreensão do humano na sua totalidade que é aqui entrevista. Trata-se de uma visão pessoal (e por isso é que é original) em torno, não só da condição humana (e segundo o “humanismo existencialista”), mas, sobretudo, em torno do destino e do dinamismo desse mesmo destino, subjacente ao grande espírito universal. Este espírito obedece, pelo menos desde Hegel, a uma força cósmica, invisível na sua essência, que o faz mover sem disso se dar conta.
O que faz do humanismo de Vergílio Ferreira um novo humanismo, é precisamente o lugar que nele o homem ocupa. Desta vez, não é apenas o espírito universal a causa principal da reflexão, embora este permaneça implícito. O que está precisamente em causa é o homem e a sua contingência. Existem, porém, os tais universos paralelos, de que falámos no início, que não se compreendem fora dessa contingência. Enunciámo-lo já: a Morte, o Tempo, Deus, a Razão e o Mistério a tudo subjacente.
O que Vergílio Ferreira procura resolver é, tão-só, a conciliação do inconciliável, essa mesma problemática já abordada na cultura e pensamento português, por Pedro de Amorim Viana e, posteriormente, por Sampaio Bruno.
No entanto, a posição de Vergílio Ferreira deve ser compreendida, de acordo com o próprio tempo e de acordo com determinadas coordenadas histórico culturais que em nada se assemelham às posições dos autores supra referidos. É certo que a dicotomia fé-razão permanece, mas é de notar que Vergílio Ferreira não se coloca na posição de um místico, antes, pelo contrário, pois o seu racionalismo, baseado na retórica e numa dialéctica mais próximas do fim do século, não lhe permitem o arroubo místico, apesar do intenso simbolismo de que se reveste a sua obra ficcional.
O autor sabe que a questão da crença não é passível de um tratamento racional, mas a razão aceita-o, da mesma forma que é capaz de aceitar o enigma da verdade. Não devemos explicar Deus por aquilo que ele é, a não ser pela sua própria divindade; a não ser pelo mistério que encarna. E não devemos ignorá-lo, simplesmente, porque Ele não é passível de uma explicação: pressente-se, está ao nosso lado, pois é assim que queremos que ele seja.
E é assim que o aparentemente inconciliável se torna aparentemente conciliador: fazer do homem, mais uma vez, o centro de todos esses universos paralelos. Esta é, seguramente, uma das teses centrais que podemos recolher no universo literário vergiliano, e pela qual é anunciado o lugar próprio do novo humanismo que nos é proposto.
O autor busca a total elevação do humano ao considerar o Homem como corolário de Deus, da Razão, do Tempo e da Morte; universos paralelos que se unificam e se tornam um só; e essa unificação dá-se; dá-se justamente na assumpção do corpo, o verdadeiro sistema que nos rege e pelo qual nos guiamos; é nele que reside a verdade absoluta; é nele que procuramos as respostas para as grandes dúvidas que nos assaltam na angústia do tempo.
Seria tudo mais fácil, talvez, se conhecêssemos os limites da razão. Mas, mesmo essa, que ilusoriamente parece dominar, possuem territórios inexplorados; não lhe conhecemos o limite e não o conhecemos, muitas vezes, devido, não só ao excesso de razão, mas também devido à ausência dessa mesma razão.
Por ela se determina a sua moral, bem como toda a sua conduta, presente ou futura. Por sua vez, também é possível vislumbrar a sua ausência pelo gesto inconsequente, pela palavra fácil, pelo pensamento irreflectido.
Não faz da razão a essencialidade do homem e essa é simplesmente a sua humanidade. Pela sua instauração, pela sua evidência, já não se pode esperar a resposta definitiva, pois a evidência é, por si mesma, a resolução de toda a dúvida.
Não basta a razão para demarcar o humanismo de Vergílio Ferreira. Há dois universos paralelos que parecem lutar um contra o outro. Nessa luta, tão eterna como o espírito humano, estão em jogo o destino, a predestinação e o acaso, quer dizer, uma vez mais a pura contingência.
É ela que determina o fascínio de estarmos vivos: a luta entre o Tempo e a Morte não é mais do que o grande desafio do Ser em relação ao seu limite desconhecido; Tempo e Morte são ilimitados, mas, note-se, e em conformidade com os traços mais finos do pensamento vergiliano, é o próprio homem que os instaura: o Tempo é uma construção mental e a necessidade da sua instauração corresponde ao milenar sofrimento humano.
Tornamo-nos escravos da hora, não só em homenagem àqueles que cumpriram o ser tempo, mas sobretudo pela necessidade de nos regermos por fusos que nos fazem sair do caos, pois sempre fomos avessos a ele, mesmo que nos lembremos do princípio grego, que data do início dos tempos, segundo o qual a ordem, o cosmos nasceu do caos, como do seu princípio originário.
A Morte, por seu lado, é outra construção mental, pois corresponde a outro desejo, que se traduz na necessidade de explicação de um universo do qual nada sabemos e pelo qual a nossa curiosidade arde de inquietação permanente. De acordo com o pensamento do autor, esse estádio não nos pertence e não nos pertence de tal forma que devêramos ignorá-lo, apagá-lo da nossa memória: rouba-nos energia que deveríamos aplicar, por exemplo, na resolução de certos destinos menos misteriosos, mas mais conformes à nossa humanidade.
E, por fim, o grande Mistério do Mundo, que não abarca apenas a morte, mas toda a essencialidade divina, ou seja, toda a opacidade de Deus; uma divindade tão misteriosa que, que por mais que a nossa crença queira ignorá-la, permanecerá sempre como uma entidade, não apenas misteriosa, mas assume em si a unificação de todo o mistério universal.
No pensamento vergiliano, o Mistério avulta como a essencialidade absoluta. É por isso que o autor jamais abdica da questionação. E questionar o Mundo devia ser o nosso primeiro destino, em vez de nos mantermos no comodismo da pura passividade, dado, não obstante, a nossa ânsia de clarividência, ou, como havia dito Aristóteles, o nosso desejo, natural de saber, de conhecer o mundo, de conhecer os homens e de nos auto-conhecermos, bem como o mistério, a auréola enigmática que envolve tudo isto.
Dessa interrogação ao Destino, princípio que aplicou ao estudo biográfico dedicado a Malraux, uma das suas grandes influências teóricas, um dos seus grandes guias, ausculta-se sempre a premência da morte e, como tal, a auscultação do Mistério. É por ele que vivemos; é por ele que a esperança recusa abandonar-nos. Porque o Mistério será, talvez, o último estádio do espírito, o último estádio da interrogação interminável.
Isabel Rosete
Por Isabel Rosete
O sentir, os sentimentos que em nós o mundo desperta, reside no homem, sempre à flor da pele, mas também acima de si mesmo, evocando uma necessidade de transcendência do “eu” que parece não caber dentro da sua própria esfera; não como uma contingência, mas como uma necessidade, tão básica e tão preciosa como a própria existência.
Por isso, «não houve lua em toda a noite e foi pena. Fazia-me bem ao sentimento um pouco de melancolia. Não tenho melancolia, eu. Também não tenho nada para em vez dela. Raiva, desespero, qualquer porcaria assim. Qualquer que estivesse acima de mim e me tomasse à sua conta. Estou metido no meu tamanho e assim é mais difícil de aguentar, porque tenho de domesticar o que é maior do que eu. De vez enquando naturalmente há a pressão. E então há a tentação de me deixar ir. Não vou. Olho à volta e tudo é grande e cabe lá tudo o que em mim é demais» .
Mais do que uma poética da prosa, em Vergílio Ferreira verifica-se uma poética do espírito, ou, se quisermos, uma poética da existência. Mas o que há é, sobretudo, uma poética do humano. É inarredável do seu espírito criativo um humanismo absoluto, mesmo quando tomamos contacto com o seu ensaísmo ou com a sua obra ficcional. É também aqui, nesta dimensão da palavra igualmente criativa, que se afirma o espírito de criador total.
É, ainda, essa Palavra infinitamente criadora que nos revela essa preocupação sistemática em pensar o homem, na sua humanidade; o homem, o que existe de mais espantoso no seio da existência. Assim o vê o autor quando cita os primeiros dois versos do segundo coro de Antígona: «O homem teve sempre a unificação do tronco e só nos ramos era diversificado e folclórico. Agora é só diverso e como justificar a diferença sem nada em que permaneça? O homem é um jogo de espelhos, com reflexos mútuos e divertidos sem nada do eu seja a reflexão. O homem é a luz de um astro para haver luz e ainda há. O homem é a ficção de si sem nada do que ainda seja ficção – mas malabarismos mentais acabou» .
Para além de todas as considerações, o autor procura uma definição de homem. Importa saber, não apenas “O Que é o Homem?”, questão essencialista que exige uma resposta do tipo “S é P”, que procura, à maneira dos lógicos, uma definição nominal, mas, sobretudo, “Quem é o Homem?”, seguindo a linha existencialista, segunda a qual a figura humana é determinada não tanto pela sua essência, mas pela sua existência. Sabemos que há múltiplas definições de homem, desde a apresentada por Cícero no princípio de todas as reflexões humanistas – «gens nulla tam fera», «tam fera quae non scicat Deum esse» – ou de Aristóteles que o rotulou com a “etiqueta” “ ” e fê-lo carregar o peso da pura racionalidade durante séculos.
Foi responsável pela existência de um Homem marcado pela ausência do sentir, dos sentimentos, que mesmo presentes não são nobres, têm um estatuto inferior ao da razão, continuando a dualidade antropológica determinada desde Platão e assaz acentuada por Descartes e outros mentores do racionalismo.
Mas sabemos, também, que o homem «é um animal que ri, é um bípede sem penas mas antes disso porque só aí começa a ser humano, um animal religioso». Independentemente das definições, torna-se claro para o autor a emergência dessa necessidade de o homem ser humano, não obstante o orgulho e a mediocridade, a sabedoria, a inteligência ou a ignorância, a petulância ou a estupidez.
O que interessa é explicar o mistério da vida, o mistério da vida humana, aquém e além de todas as definições, porque o homem é, para Vergílio Ferreira a sua própria vida: a sua essência reside na sua existência, ou melhor, a sua essência reside no seu próprio modo de vida. E é na infância que encontramos a verdade essencial e indestrutível para a vida inteira, essa verdade guardada na memória que retém todo o passado e anuncia todo o futuro.
O tema da Infância do homem, da infância do próprio autor, surge na escrita vergiliana antes de mais porque é um tema que faz remontar ao mais originário, ao início, à fonte impalpável do sentir. Assoma, naturalmente, desde Manhã Submersa (1988), sendo depois recuperado em muitos dos seus romances posteriores.
A Infância é essa espécie de menoridade mental, uma espécie de primeiro estádio existencial, o primeiro modo de ser e de estar do homem no mundo, onde repousam só aquelas coisas que existem para quem não cresceu.
Vergílio Ferreira não se coloca, obviamente, numa posição psicologista ou psicanalítica, quando escreve sobre a infância, sobre a sua infância, mas numa linha puramente existencialista, que envereda pelo sentido da auscultação das marcas de um “eu” vivente sempre personificado, mas nunca objectivado, que, aliás, perpassa, toda a sua obra. Esse “eu” vivente, nesse primeiro estádio existencial, incorpora em si o excessivo de tudo quando a vida começa, o entendimento do incompreensível, a melancolia de estar só.
«A infância, lembro-me às vezes, escreve Vergílio Ferreira, em Até ao Fim. Lembro-me pouco, é curioso. Possivelmente tem-se a infância do que se é na idade adulta. E não ao contrário. A única coisa que me lembro na idade adulta – será isso ser-se? A única coisa que me coube na idade adulta é aguentar. Aguentar é ser contra o que nos é contra, tudo tem sido tão contra. Mas às vezes, a infância, a adolescência – que é que vem ter comigo desde então?» .
Vergílio Ferreira determina, aquém e além de todas a definições ou problemáticas, o seu grande objectivo para a humanidade:
1. «Retornar à medida humana e está lá a grandeza toda»;
2. «A reconversão ao microcosmos em que tudo está ao alcance da mão»;
Afinal, «o homem é que criou tudo que criou. E ao princípio era ele. O homem só não é o princípio quando é o fim estendido para arrumação». Então já não falamos do homem, mas «do lixo municipal».
Mas Vergílio Ferreira, o narrador, detesta este tipo de figura, de rosto, em que o homem se tornou, pela sua mania do problema, pela mania de entender, por essa obsessão excessiva de ser histórico, «sentado na História como se ela fosse um carro eléctrico» .
E detesta-o, ainda, por trabalhar a um número alto de pulsações por minuto, mas, sobretudo, por se parecer consigo, Vergílio Ferreira, pelo que o repulsa em si mesmo: essa «emoção fácil», esse «vício reflexivo» . O homem é assim mesmo; e o seu «destino é estoirar», a não ser que haja um freio que se lhe coloque, sempre que não pensa como um animal racional, sempre que não tem ideias e viva, apenas, de violência e de inutilidades.
Mas o que podemos dizer, ainda, do Homem? Encontramos ou não, um conjunto de palavras que o possam “definir”, ou pelo menos, determinar os traços do seu ser si mesmo? «Olho as últimas estrelas, mas tudo é falsificação. Que outra definição para o homem? Também gosto de definir. Génio no desemprego, também. Construção aérea de si, imaginário de si. Também. Ser falsificado. É a definição do Homem.»
Essa poética do humano, essa poética da existência, onde Vergílio Ferreira funde, em última instância, o homem e a arte, é anunciada e enunciada em Do Mundo Original, onde o autor reflecte especificamente sobre a arte, sobre o romance, na esteira de Malraux ou de Cassirrer, apontando no próprio destino da arte o destino do homem (tema que desenvolveremos com particular acuidade no próximo capítulo), também claramente enunciado numa obra posterior – Pensar (1992) – onde perguntar pelo futuro da arte torna-se sinónimo do perguntar pelo futuro do homem .
Nesta obra se vislumbra o autor de Espaço do Invisível. Uma vez mais e sempre a questionação das coisas e do mundo, a reflexão em torno da arte e de todas as suas implicações estéticas na sua relação com o tempo.
Desta notável obra ensaística dois livros que ficarão, «para sempre», como um marco notável do ensaio contemporâneo: Invocação ao Meu Corpo e Pensar, estes últimos escritos de acordo com o estilo do seu Diário (a sua obra maior em extensão, pois abrange nove volumes, publicados entre 1800 e 1994).
Pensar, assume já uma dimensão fragmentária, pois é constituído por breves apontamentos de reflexão acerca da vida quotidiana, do país e do mundo, desse mundo que o autor contemplava sem se deixar envolver por ele de um modo directo, mas cujo íntimo sofrimento não era menor por isso. Projecta-se uma vez mais, o autor, nesse Espaço do Invisível, ou seja, nesse espaço metafísico onde só as ideias e o espírito que lhes é subjacente sobrevivem.
De facto, movemo-nos por entre a invisibilidade como quem se move por entre nevoeiro denso. Por ela, a nossa vida verdadeira submerge ao olhar do mundo. Nasce, porventura aí, o nosso sofrimento maior. Talvez a nossa solidão definitiva. Por vezes, a solidão do escritor é um mito, há muito instaurado em certas mentalidades.
Ser solitário é isso mesmo: ser invisível face ao olhar agressivo e violento do mundo, um mundo cada vez mais incompreensível perante cada existência individual. Ao olhar do espírito, a complexidade do mundo assume uma dimensão absurda, pois os caminhos do homem devem procurar a simplicidade. Este será sempre um dos princípios da superior criação: só pela simplicidade poderemos algum dia ser verdadeiramente fecundos.
E apesar de fragmentário, em Pensar, há uma nova compreensão do homem, um novo julgamento acerca da nossa condição de seres viventes no meio social. Mas há, também, uma visão cristalina, como se o autor estivesse a descobrir o mundo pela primeira vez. Sentimos sempre essa obsessão: a procura pelo começo do começo, a busca do inaugural, do absolutamente primeiro, tão fascinantemente presente em Até ao Fim: «Todo o começo é ingénuo e necessário. Toda a esperança está cheia de um deus mortal. Um filho que nasce, uma obra que se inicia. Uma verdade que se ilumina. É a história do homem (...)» .
É preciso ser simples até à origem, até ao elementar e «entender o sinal do início. Do que é gratuito». É preciso regressar às «origens do mundo na terra final desabitada», e tomar nas mãos toda a história do Homem, «desde um dia até um dia», e atirá-la para o mar onde se dissolve na «espuma enrodilhada», dispersando-se no seu rumor. Porque o autor sabe que o «Universo vai começar», ouve-o no «estrondear intenso das águas», como não ser ele aí no começo de si. «E o aroma intenso à vida, à fertilidade, o mar sabe a voz primordial» . Porque, afinal, o que há a nascer não tem memória como é próprio de quem nasceu.
Mas, no entanto, essa visão do homem que é ao mesmo tempo uma visão do começo, da origem, não é desencantada (apesar da aparente amargura de múltiplas afirmações, pois a lucidez é o seu principal atributo. E não há lugar para o desencanto ou para a desilusão, ou, mesmo, para um desânimo fatal.
O autor, continua, “até ao fim”, com a sua tarefa de questionador. E é na própria interrogação que o leitor quase consegue vislumbrar a resposta. Dessa iluminação da palavra, resulta a essência da “genialidade” de Vergílio Ferreira, conceito que utilizamos secundando o conceito goethiano no que respeita ao universalismo da literatura.
Dessa cristalinidade presente em Pensar, obra onde não existe propriamente uma teoria filosófica ordenada, mas um conjunto de reflexões direccionadas numa ideia fundamental, que é, justamente, a defesa do espiritual contra o material, o desejo de ver justiça no, lugar da injustiça, dizíamos que o autor parece descobrir o mundo novamente, como se até aquele momento estivesse adormecido num limbo qualquer.
Se não encontrámos ainda a tão apregoada “maturidade” do escritor, tão discutida pelos críticos, mas que para nós ainda não se tornou um conceito claro, cabe nos abordar onde a capacidade reflexiva se alia à “maturidade” da palavra e no qual o nosso autor explana as principais questões que dizem respeito ao homem, tema central e unificador de toda a sua obra.
Esse livro, Invocação ao Meu Corpo, representa o lugar-limite do pensamento do autor. O corpo de que aqui nos fala, como sendo uma das temáticas fundamentais, não é apenas o seu, mas sobretudo o de todos nós, filhos de uma terra à qual damos o nome e a qual, por sua vez, nos dá o nome. Pelo corpo somos os imediatos questionadores do universo: nada é superior à força divina, mas também nada é superior à nossa imanência.
A circunstância imanente, a condição imanente, material, contingente, mortal, acaba por se tornar um poder na ordem cósmica; somos limitados dentro dos nossos limites: essa é a primeira grandeza do homem. Se assim não fosse seria impensável construir a Civilização; seriam impensáveis o afecto e o amor, bem como a loucura apaixonada dos grandes desafios; em suma, todo o imaginário que nos faz ter apreço pela vida.
O que neste livro é colocado em evidência é o seu humanismo; é a compreensão do humano na sua totalidade que é aqui entrevista. Trata-se de uma visão pessoal (e por isso é que é original) em torno, não só da condição humana (e segundo o “humanismo existencialista”), mas, sobretudo, em torno do destino e do dinamismo desse mesmo destino, subjacente ao grande espírito universal. Este espírito obedece, pelo menos desde Hegel, a uma força cósmica, invisível na sua essência, que o faz mover sem disso se dar conta.
O que faz do humanismo de Vergílio Ferreira um novo humanismo, é precisamente o lugar que nele o homem ocupa. Desta vez, não é apenas o espírito universal a causa principal da reflexão, embora este permaneça implícito. O que está precisamente em causa é o homem e a sua contingência. Existem, porém, os tais universos paralelos, de que falámos no início, que não se compreendem fora dessa contingência. Enunciámo-lo já: a Morte, o Tempo, Deus, a Razão e o Mistério a tudo subjacente.
O que Vergílio Ferreira procura resolver é, tão-só, a conciliação do inconciliável, essa mesma problemática já abordada na cultura e pensamento português, por Pedro de Amorim Viana e, posteriormente, por Sampaio Bruno.
No entanto, a posição de Vergílio Ferreira deve ser compreendida, de acordo com o próprio tempo e de acordo com determinadas coordenadas histórico culturais que em nada se assemelham às posições dos autores supra referidos. É certo que a dicotomia fé-razão permanece, mas é de notar que Vergílio Ferreira não se coloca na posição de um místico, antes, pelo contrário, pois o seu racionalismo, baseado na retórica e numa dialéctica mais próximas do fim do século, não lhe permitem o arroubo místico, apesar do intenso simbolismo de que se reveste a sua obra ficcional.
O autor sabe que a questão da crença não é passível de um tratamento racional, mas a razão aceita-o, da mesma forma que é capaz de aceitar o enigma da verdade. Não devemos explicar Deus por aquilo que ele é, a não ser pela sua própria divindade; a não ser pelo mistério que encarna. E não devemos ignorá-lo, simplesmente, porque Ele não é passível de uma explicação: pressente-se, está ao nosso lado, pois é assim que queremos que ele seja.
E é assim que o aparentemente inconciliável se torna aparentemente conciliador: fazer do homem, mais uma vez, o centro de todos esses universos paralelos. Esta é, seguramente, uma das teses centrais que podemos recolher no universo literário vergiliano, e pela qual é anunciado o lugar próprio do novo humanismo que nos é proposto.
O autor busca a total elevação do humano ao considerar o Homem como corolário de Deus, da Razão, do Tempo e da Morte; universos paralelos que se unificam e se tornam um só; e essa unificação dá-se; dá-se justamente na assumpção do corpo, o verdadeiro sistema que nos rege e pelo qual nos guiamos; é nele que reside a verdade absoluta; é nele que procuramos as respostas para as grandes dúvidas que nos assaltam na angústia do tempo.
Seria tudo mais fácil, talvez, se conhecêssemos os limites da razão. Mas, mesmo essa, que ilusoriamente parece dominar, possuem territórios inexplorados; não lhe conhecemos o limite e não o conhecemos, muitas vezes, devido, não só ao excesso de razão, mas também devido à ausência dessa mesma razão.
Por ela se determina a sua moral, bem como toda a sua conduta, presente ou futura. Por sua vez, também é possível vislumbrar a sua ausência pelo gesto inconsequente, pela palavra fácil, pelo pensamento irreflectido.
Não faz da razão a essencialidade do homem e essa é simplesmente a sua humanidade. Pela sua instauração, pela sua evidência, já não se pode esperar a resposta definitiva, pois a evidência é, por si mesma, a resolução de toda a dúvida.
Não basta a razão para demarcar o humanismo de Vergílio Ferreira. Há dois universos paralelos que parecem lutar um contra o outro. Nessa luta, tão eterna como o espírito humano, estão em jogo o destino, a predestinação e o acaso, quer dizer, uma vez mais a pura contingência.
É ela que determina o fascínio de estarmos vivos: a luta entre o Tempo e a Morte não é mais do que o grande desafio do Ser em relação ao seu limite desconhecido; Tempo e Morte são ilimitados, mas, note-se, e em conformidade com os traços mais finos do pensamento vergiliano, é o próprio homem que os instaura: o Tempo é uma construção mental e a necessidade da sua instauração corresponde ao milenar sofrimento humano.
Tornamo-nos escravos da hora, não só em homenagem àqueles que cumpriram o ser tempo, mas sobretudo pela necessidade de nos regermos por fusos que nos fazem sair do caos, pois sempre fomos avessos a ele, mesmo que nos lembremos do princípio grego, que data do início dos tempos, segundo o qual a ordem, o cosmos nasceu do caos, como do seu princípio originário.
A Morte, por seu lado, é outra construção mental, pois corresponde a outro desejo, que se traduz na necessidade de explicação de um universo do qual nada sabemos e pelo qual a nossa curiosidade arde de inquietação permanente. De acordo com o pensamento do autor, esse estádio não nos pertence e não nos pertence de tal forma que devêramos ignorá-lo, apagá-lo da nossa memória: rouba-nos energia que deveríamos aplicar, por exemplo, na resolução de certos destinos menos misteriosos, mas mais conformes à nossa humanidade.
E, por fim, o grande Mistério do Mundo, que não abarca apenas a morte, mas toda a essencialidade divina, ou seja, toda a opacidade de Deus; uma divindade tão misteriosa que, que por mais que a nossa crença queira ignorá-la, permanecerá sempre como uma entidade, não apenas misteriosa, mas assume em si a unificação de todo o mistério universal.
No pensamento vergiliano, o Mistério avulta como a essencialidade absoluta. É por isso que o autor jamais abdica da questionação. E questionar o Mundo devia ser o nosso primeiro destino, em vez de nos mantermos no comodismo da pura passividade, dado, não obstante, a nossa ânsia de clarividência, ou, como havia dito Aristóteles, o nosso desejo, natural de saber, de conhecer o mundo, de conhecer os homens e de nos auto-conhecermos, bem como o mistério, a auréola enigmática que envolve tudo isto.
Dessa interrogação ao Destino, princípio que aplicou ao estudo biográfico dedicado a Malraux, uma das suas grandes influências teóricas, um dos seus grandes guias, ausculta-se sempre a premência da morte e, como tal, a auscultação do Mistério. É por ele que vivemos; é por ele que a esperança recusa abandonar-nos. Porque o Mistério será, talvez, o último estádio do espírito, o último estádio da interrogação interminável.
Isabel Rosete
"DESTINO E MORTE DAS PALAVRAS EM VERGÍLIO FERREIRA", por Isabel Rosete
«Mas como dizer aquilo mesmo que julgamos dizer, o que em palavras comuns enunciamos? (...) Como dizer "morte" à superfície deste vocábulo "morte"? (...) Mas o mesmo vocábulo esgotou sem esgotar toda a rede infinita que o prende. Escrevo a palavra «morte» e como admitir que nela tenha esgotado a perturbação que me toma, até porque nem sempre me toma? Escrevo a palavra "luz" e como conceber que ela ilumina toda a minha alegria para que outrem ou eu próprio a reconheça?.»
Vergílio Ferreira
«Quando falamos neste homem de Melo, de ar calmo e absolutamente sereno, olhando para o mundo ao mesmo tempo que olha para o interior de si mesmo, não podemos deixar de o conceber como uma excepção. No seio da literatura portuguesa assumiu a difícil e ingrata vocação de denunciar a morte da palavra, da arte do homem no pensamento contemporâneo.
Remou contra a maré como os profetas e a sua voz isolada, apesar do anúncio primeiro da morte de Deus e depois da morte do Homem, não se cansou, porém, de afirmar o valor do homem e a grandeza das suas manifestações, mas também de valorizar a dúvida, que o tornou particularmente incomodo no meio da intelectualidade portuguesa.
É neste contexto, que devemos entender a imagem a que o escritor recorreu, aquando da entrega do Prémio APE, em 1998: «Escrevi algures que numa carroça quem tem menos problemas é o cavalo. Mas precisamente por isso foi a sorte do cavalo que normalmente e no fundo o homem para si pretendeu. Alguém que tome conta de nós, alguém, alguma coisa, que tome sobre si o que é o peso do nosso excesso».
De resto, o que evocará Vergílio Ferreira que não esteja já na profunda admiração pela sua obra? A sua vida pertenceu-lhe inteira em cada livro. A sua vida (e também a sua morte) está toda, inteira, na sua obra.
Digamos que o autor escreveu uma única e grande obra que atravessa todos os seus livros, pelo que entenderemos todos os sinais que deixou em cada um deles como um lamento por um mundo que desaparecia lentamente, e por uma relação perdida entre os homens e a felicidade.
Este homem sombrio que às vezes escrevia com acentos graves de pitonisa que nos anuncia catástrofes inconcebíveis, este perscrutador de mistérios e negrumes, nunca foi capaz de aceitar pacificamente esta verdade tão simples: que só a força intrínseca da sua obra, a um tempo, fremente e sólida, o podia salvar.
Ora, aquela “inverossimilhança” que o autor de "Aparição" atribuiu à morte cobra, de facto, um outro sentido. Tudo na sua luz se transfigura: a voz do amigo desaparecido, os seus gestos, o rosto que nos serve de espelho de uma vida, e até os seus textos que foram a sua verdadeira vida e com ela se confundiam.
Textos sempre ligados ao sonho e à paixão que os criou, coligidos com uma espécie de solidão de ninguém, como a das estrelas. Em última análise, pensamos, é assim que muitos autores o imaginam e poucos os terão transposto para esse espaço invulnerável onde o rumor da vida e das feridas que dela supuram já não se ouvem ou não sangram, como na alma deste escritor que nos ficou «para sempre».
Vergílio Ferreira quis, menos do que se defender do que se abrigar de tudo e de si mesmo, confundir-se com a voz da solidão, que cedo o habitou com um excesso, que nem a obra toda glosando-a com uma obsessão intensa, pôs cobro. «Só» é uma pequena grande palavra que caracteriza toda a sua vida e toda a sua obra, quiçá a vida e as obras de todos os seres humanos. «Só», o mais curto dos nomes, que deu à radical vivência da condição humana, como ele a sentiu e viveu, o mesmo brasão do amor fraterno.
Sentimos em cada acto da escrita vergiliana um ostensivo culto da tristeza, qual incansável reiteração da evidência das evidências, co-essencial à nossa existência como finitude. E em torno desse «lugar-comum» ergueu uma elegia fulgurante, quiçá narcisista, ou se preferirmos, complacente música sobre a sua finitude, a sua morte e não sobre a intrínseca e anónima mortalidade, como defenderia Beckett.
Sobre toda a obra vergiliana encontramos o fantasma da própria morte do escritor, tal como Rilke o invocou. E por esta via, está naturalmente presente, suportando sobre a sua realidade da sombra, o peso e o esplendor do que chamamos mundo e vida.
Se enveredarmos por outra postura hermenêutica, talvez seja uma injustiça, encerrar a sua temática da solidão metafísica do homem, no mero círculo da subjectividade. Em termos de ficção, a Morte comparece, desde as suas primeiras palavras, como o acontecimento empírico, de espécie única, que realmente é.
Se retirarmos o fantasma da morte do nossos horizonte, não há ficção, pois toda a ficção não é senão o resultado dessa necessidade intrínseca de contornar o problema, de integrar simbolicamente a morte na realidade que ela subverte pela sua irrupção. Ora essa morte foi durante muito tempo, nos romances de Vergílio Ferreira, a morte dos próximos: do Pai e da Mãe.
Nelas, o narrador – sempre o duplo do autor – descobre e é posto em presença da forma sensível da ausência pura – aquela que faz parte de nós – restabelecendo-o na sua “hora zero”, obrigado a inventar-se neste mundo onde tudo perde, de súbito, significação e realidade. Não é, por isso, Vergílio Ferreira que descobre a solidão, mas a solidão que o descobre. E “para sempre”. Em derredor do que já não é, do que não “existe”, como o autor escreveria, deve inventar, ser, “ser-se”, mais precisamente.
Começou a sua luta pessoal em volta do Anjo que, como para Malraux, terá o rosto da ausência ofuscante a que chamamos Morte. Combate sem fim que supõe um cavaleiro imortal, um Eu que não tem outra essência da presença de cada um a si mesmo, aquilo a que chamamos Vida – a nossa vida.
Eis a grande novidade/inovação temática da escrita vergiliana: vida que nos entretece «nos limites necessários do seu entretecer-se, sem aquém , nem para lá». «Mas a nossa vida é “a” vida», que se acelerou até à vertigem, embora o corpo retardador nos atropela a ordem e a sucessão. A vida que «está cheia do milagre vertiginoso. Tão cheia, que a tua capacidade de espanto se pode executar diante de um simples verme. Porque olhas um verme sem estremeceres?» .
A literatura contemporânea de Vergílio Ferreira, não se alimentava de preocupações ou obsessões deste género, informa-nos Eduardo Lourenço, num texto escrito em Coimbra, em 8 de Março de 1996. A sociedade com os seus conflitos sociais, a História com os seus dramas, a vida individual com o labirinto das suas ambições e paixões, eram o vasto campo da transposição romanesca.
Os temas dominantes dos romancistas seus contemporâneos – principalmente aqueles amplamente explorados por José Régio – não deixam de estar presentes na obra de Vergílio Ferreira, obsessivamente atento às peripécias do mundo, ao desenrolar do destino do mundo, ou à procura por um sentido da História e da Vida, cada vez mais improvável.
Como diria Kierkegaard, filósofo a que o escritor tantas vezes se refere nos seus ensaios, todos estes temas serão sempre os arredores de uma «única questão»: restaurar e reiterar sem cansaço a evidência das evidências, a de um Eu, ao mesmo tempo contingente, porque “produto” de uma cadeia de causas em cada momento da nossa genealogia, improváveis, e absoluto na sua pura presença em volta do qual se organiza aquilo que para nós é o que nos existe, como fonte de exaltação ou de frustração.
É claro que desde Aparição, que Vergílio Ferreira se instalou na figura de “mensageiro” desta revelação, conquistando o seu lugar como voz epifânica, a única que permite distinguir a vida como existência sonâmbula ou in-autêntica, e a existência acordada ou existência autêntica, sem, contudo, que ninguém esteja certo de viver a sua vida como ideal de vigília: os próprios Apóstolos, sempre atentos a todos os passos de Cristo, também adormeceram na hora solitária do Mestre.
Mesmo que digamos que foi a sua vocação naturalmente poética, os seus dons de lírico ou a sua vocação para a mitificação das ideias e da mais banal experiência quotidiana, que tornaram Vergílio Ferreira romancista, não poderemos obnubilar que a sua obra é a encenação de uma única história e essa história é a lenta emergência, depurada de livro em livro, do eterno conto de “amor e morte”, tão similar ao de Tristão e Isolda.
O que foi vivido pelo autor, trás a marca de uma elaboração estética profundamente exigente, através da qual acabou por instalar no lugar da solidão original, o Anjo da solidão que o consolou de tudo e o assistiu na hora impensável da sua própria morte, o Anjo que, sem embargo, é sempre do domínio do terrível .
O autor de "Para Sempre" (1983), de "Até ao Fim" (1987), de "Em Nome da Terra" (1990), e de "Na Tua Face" (1993) ou do final, quase póstumo, de "Cartas a Sandra" (1996), está a iniciar o caminho do regresso, querendo, no entanto, «perseguir até ao fim achar o mar» . É por isso que estes livros se nos afiguram com uma força inaudita, desmedida, e-norme, face à nossa tão notável pequenez.
O autor que sempre lutou contra a inevitabilidade da morte, adivinha a sua morte física, mas assume-a com serenidade. Sem dúvida que também com relutância, com o desejo de a adiar por mais algum tempo. No entanto, sabe que a não poderá adiar: é um estádio que se instaura de acordo com um regulamento invisível, cósmico, inexorável.
E, naturalmente, uma interrogação simples, mas profunda: o que é que a obra de Vergílio Ferreira significa para nós, hoje (perguntamo-lo reiteradamente, porque as perspectivas são múltiplas, quiçá infinitas). Simplesmente a sua capacidade de nos serenar e, ao mesmo tempo, deslumbrar.
A serenidade afirma-se quando o leitor começa a aperceber-se de que, afinal, não estava sozinho no Universo. O deslumbramento é a consequência, não apenas da situação existencial que aí é revelada, mas também da própria palavra, veículo absoluto de revelação, forma suprema de epifania, que constituiu a própria vida e obra do autor.
Outras questões, igualmente simples e profundas, emergem na sequência da anterior: o que faz de Vergílio Ferreira um dos autores mais representativos da recente literatura e reflexão filosófico-estética portuguesa hodierna? O que é que nele permite o pressentimento de que estamos perante uma voz universal? O que é que nele se adivinha de eterno?
Justamente a palavra. No início de Para Sempre, citando Saul Dias, escreve:
«A vida Inteira para dizer uma palavra!
Felizes os que chegam a dizer uma palavra!»
A Palavra, pois. Não se trata apenas de verbalizar um pensamento; trata-se, sobretudo, de fazer da Palavra a essência de um pensamento onde nada está a mais. Sentimento e pensamento poético conjugam-se, unificam-se, de modo a ascenderem ao seu intrínseco princípio da criação. Aliás, «O falar é bom. Mata a preocupação (...). O falar desoprime e revela a hipocrisia do sentir talvez um coral ou discurso de apresentação (...). – Eu disse que o sentir era hipócrita? Não é verdade. É o que está mais próximo do ser (...) Mas só as palavras o esclarecem, só nelas o sentir é verdade assumida».
Nesse universo inextricável das palavras, onde repousa, a um tempo, a grandeza e miséria do homem, como diria Hölderlin, resta-nos, mesmo nas mais nobres e dignas circunstâncias, amar o silêncio, o que ficou por dizer, o que se disse sem se ter pronunciado uma única letra.
Amar o silêncio por entre as vozes que tudo e nada insinuam: eis talvez uma das grandes mensagens impressa na escrita vergiliana, em tempo de abuso do verbo, do ilusionismo feito com as palavrs, já gastas pela inevitável massificação e consequente vacuidade da linguagem.
É a palavra dos Sofistas que renascem, com toda a vivacidade, dessa época retórica por que passou a Grécia Antiga, depois dos tempos memoriais do pensar primordial, nesse período conturbado do pensamento ocidental que se seguiu Sófocles e que antecedeu a filosofia socrático-platónica e que, contemporaneamente, floresce de uma forma ainda mais sub-reptícia, nominalista, onde os vocábulos remetem uns para as outros e não mais para o referencial ontológico que naturalmente suporta todo o nosso dizer.
Assim o lemos nas entrelinhas traçadas pela pena do escritor, e assim se lê também, de um modo explicito, no veredicto de Cabral do Nascimento, no poema intitulado «Amo o Silêncio», que tão claramente espelha o mais íntimo da sensível alma vergiliana: «Amo o silêncio e as vozes que insinuam / Meigas, ciciam musicais velados, / Fracas, serenas, pálidas, cansadas, / Doces palavras que no ar flutuam. / Amo o silêncio e a luz difusa ... E amo / A tarde cor de cinza, a chuva calma; / E o mar sem ondas, liso como a palma / Da minha mão aberta ... E, em cada ramo / Das árvores sem folhas, amo os verdes / Musgos pendentes, flácidos, em tiras ... / Assim, minha alma extática, suspiras, / Meu coração tranquilo, assim te perdes! / Rude fragor do mundo, sombra fria, / Passa de largo! Não me acordes, não! / Deixa correr a fonte da ilusão, / Enche-me a vida de melancolia» .
Isabel Rosete
«Mas como dizer aquilo mesmo que julgamos dizer, o que em palavras comuns enunciamos? (...) Como dizer "morte" à superfície deste vocábulo "morte"? (...) Mas o mesmo vocábulo esgotou sem esgotar toda a rede infinita que o prende. Escrevo a palavra «morte» e como admitir que nela tenha esgotado a perturbação que me toma, até porque nem sempre me toma? Escrevo a palavra "luz" e como conceber que ela ilumina toda a minha alegria para que outrem ou eu próprio a reconheça?.»
Vergílio Ferreira
«Quando falamos neste homem de Melo, de ar calmo e absolutamente sereno, olhando para o mundo ao mesmo tempo que olha para o interior de si mesmo, não podemos deixar de o conceber como uma excepção. No seio da literatura portuguesa assumiu a difícil e ingrata vocação de denunciar a morte da palavra, da arte do homem no pensamento contemporâneo.
Remou contra a maré como os profetas e a sua voz isolada, apesar do anúncio primeiro da morte de Deus e depois da morte do Homem, não se cansou, porém, de afirmar o valor do homem e a grandeza das suas manifestações, mas também de valorizar a dúvida, que o tornou particularmente incomodo no meio da intelectualidade portuguesa.
É neste contexto, que devemos entender a imagem a que o escritor recorreu, aquando da entrega do Prémio APE, em 1998: «Escrevi algures que numa carroça quem tem menos problemas é o cavalo. Mas precisamente por isso foi a sorte do cavalo que normalmente e no fundo o homem para si pretendeu. Alguém que tome conta de nós, alguém, alguma coisa, que tome sobre si o que é o peso do nosso excesso».
De resto, o que evocará Vergílio Ferreira que não esteja já na profunda admiração pela sua obra? A sua vida pertenceu-lhe inteira em cada livro. A sua vida (e também a sua morte) está toda, inteira, na sua obra.
Digamos que o autor escreveu uma única e grande obra que atravessa todos os seus livros, pelo que entenderemos todos os sinais que deixou em cada um deles como um lamento por um mundo que desaparecia lentamente, e por uma relação perdida entre os homens e a felicidade.
Este homem sombrio que às vezes escrevia com acentos graves de pitonisa que nos anuncia catástrofes inconcebíveis, este perscrutador de mistérios e negrumes, nunca foi capaz de aceitar pacificamente esta verdade tão simples: que só a força intrínseca da sua obra, a um tempo, fremente e sólida, o podia salvar.
Ora, aquela “inverossimilhança” que o autor de "Aparição" atribuiu à morte cobra, de facto, um outro sentido. Tudo na sua luz se transfigura: a voz do amigo desaparecido, os seus gestos, o rosto que nos serve de espelho de uma vida, e até os seus textos que foram a sua verdadeira vida e com ela se confundiam.
Textos sempre ligados ao sonho e à paixão que os criou, coligidos com uma espécie de solidão de ninguém, como a das estrelas. Em última análise, pensamos, é assim que muitos autores o imaginam e poucos os terão transposto para esse espaço invulnerável onde o rumor da vida e das feridas que dela supuram já não se ouvem ou não sangram, como na alma deste escritor que nos ficou «para sempre».
Vergílio Ferreira quis, menos do que se defender do que se abrigar de tudo e de si mesmo, confundir-se com a voz da solidão, que cedo o habitou com um excesso, que nem a obra toda glosando-a com uma obsessão intensa, pôs cobro. «Só» é uma pequena grande palavra que caracteriza toda a sua vida e toda a sua obra, quiçá a vida e as obras de todos os seres humanos. «Só», o mais curto dos nomes, que deu à radical vivência da condição humana, como ele a sentiu e viveu, o mesmo brasão do amor fraterno.
Sentimos em cada acto da escrita vergiliana um ostensivo culto da tristeza, qual incansável reiteração da evidência das evidências, co-essencial à nossa existência como finitude. E em torno desse «lugar-comum» ergueu uma elegia fulgurante, quiçá narcisista, ou se preferirmos, complacente música sobre a sua finitude, a sua morte e não sobre a intrínseca e anónima mortalidade, como defenderia Beckett.
Sobre toda a obra vergiliana encontramos o fantasma da própria morte do escritor, tal como Rilke o invocou. E por esta via, está naturalmente presente, suportando sobre a sua realidade da sombra, o peso e o esplendor do que chamamos mundo e vida.
Se enveredarmos por outra postura hermenêutica, talvez seja uma injustiça, encerrar a sua temática da solidão metafísica do homem, no mero círculo da subjectividade. Em termos de ficção, a Morte comparece, desde as suas primeiras palavras, como o acontecimento empírico, de espécie única, que realmente é.
Se retirarmos o fantasma da morte do nossos horizonte, não há ficção, pois toda a ficção não é senão o resultado dessa necessidade intrínseca de contornar o problema, de integrar simbolicamente a morte na realidade que ela subverte pela sua irrupção. Ora essa morte foi durante muito tempo, nos romances de Vergílio Ferreira, a morte dos próximos: do Pai e da Mãe.
Nelas, o narrador – sempre o duplo do autor – descobre e é posto em presença da forma sensível da ausência pura – aquela que faz parte de nós – restabelecendo-o na sua “hora zero”, obrigado a inventar-se neste mundo onde tudo perde, de súbito, significação e realidade. Não é, por isso, Vergílio Ferreira que descobre a solidão, mas a solidão que o descobre. E “para sempre”. Em derredor do que já não é, do que não “existe”, como o autor escreveria, deve inventar, ser, “ser-se”, mais precisamente.
Começou a sua luta pessoal em volta do Anjo que, como para Malraux, terá o rosto da ausência ofuscante a que chamamos Morte. Combate sem fim que supõe um cavaleiro imortal, um Eu que não tem outra essência da presença de cada um a si mesmo, aquilo a que chamamos Vida – a nossa vida.
Eis a grande novidade/inovação temática da escrita vergiliana: vida que nos entretece «nos limites necessários do seu entretecer-se, sem aquém , nem para lá». «Mas a nossa vida é “a” vida», que se acelerou até à vertigem, embora o corpo retardador nos atropela a ordem e a sucessão. A vida que «está cheia do milagre vertiginoso. Tão cheia, que a tua capacidade de espanto se pode executar diante de um simples verme. Porque olhas um verme sem estremeceres?» .
A literatura contemporânea de Vergílio Ferreira, não se alimentava de preocupações ou obsessões deste género, informa-nos Eduardo Lourenço, num texto escrito em Coimbra, em 8 de Março de 1996. A sociedade com os seus conflitos sociais, a História com os seus dramas, a vida individual com o labirinto das suas ambições e paixões, eram o vasto campo da transposição romanesca.
Os temas dominantes dos romancistas seus contemporâneos – principalmente aqueles amplamente explorados por José Régio – não deixam de estar presentes na obra de Vergílio Ferreira, obsessivamente atento às peripécias do mundo, ao desenrolar do destino do mundo, ou à procura por um sentido da História e da Vida, cada vez mais improvável.
Como diria Kierkegaard, filósofo a que o escritor tantas vezes se refere nos seus ensaios, todos estes temas serão sempre os arredores de uma «única questão»: restaurar e reiterar sem cansaço a evidência das evidências, a de um Eu, ao mesmo tempo contingente, porque “produto” de uma cadeia de causas em cada momento da nossa genealogia, improváveis, e absoluto na sua pura presença em volta do qual se organiza aquilo que para nós é o que nos existe, como fonte de exaltação ou de frustração.
É claro que desde Aparição, que Vergílio Ferreira se instalou na figura de “mensageiro” desta revelação, conquistando o seu lugar como voz epifânica, a única que permite distinguir a vida como existência sonâmbula ou in-autêntica, e a existência acordada ou existência autêntica, sem, contudo, que ninguém esteja certo de viver a sua vida como ideal de vigília: os próprios Apóstolos, sempre atentos a todos os passos de Cristo, também adormeceram na hora solitária do Mestre.
Mesmo que digamos que foi a sua vocação naturalmente poética, os seus dons de lírico ou a sua vocação para a mitificação das ideias e da mais banal experiência quotidiana, que tornaram Vergílio Ferreira romancista, não poderemos obnubilar que a sua obra é a encenação de uma única história e essa história é a lenta emergência, depurada de livro em livro, do eterno conto de “amor e morte”, tão similar ao de Tristão e Isolda.
O que foi vivido pelo autor, trás a marca de uma elaboração estética profundamente exigente, através da qual acabou por instalar no lugar da solidão original, o Anjo da solidão que o consolou de tudo e o assistiu na hora impensável da sua própria morte, o Anjo que, sem embargo, é sempre do domínio do terrível .
O autor de "Para Sempre" (1983), de "Até ao Fim" (1987), de "Em Nome da Terra" (1990), e de "Na Tua Face" (1993) ou do final, quase póstumo, de "Cartas a Sandra" (1996), está a iniciar o caminho do regresso, querendo, no entanto, «perseguir até ao fim achar o mar» . É por isso que estes livros se nos afiguram com uma força inaudita, desmedida, e-norme, face à nossa tão notável pequenez.
O autor que sempre lutou contra a inevitabilidade da morte, adivinha a sua morte física, mas assume-a com serenidade. Sem dúvida que também com relutância, com o desejo de a adiar por mais algum tempo. No entanto, sabe que a não poderá adiar: é um estádio que se instaura de acordo com um regulamento invisível, cósmico, inexorável.
E, naturalmente, uma interrogação simples, mas profunda: o que é que a obra de Vergílio Ferreira significa para nós, hoje (perguntamo-lo reiteradamente, porque as perspectivas são múltiplas, quiçá infinitas). Simplesmente a sua capacidade de nos serenar e, ao mesmo tempo, deslumbrar.
A serenidade afirma-se quando o leitor começa a aperceber-se de que, afinal, não estava sozinho no Universo. O deslumbramento é a consequência, não apenas da situação existencial que aí é revelada, mas também da própria palavra, veículo absoluto de revelação, forma suprema de epifania, que constituiu a própria vida e obra do autor.
Outras questões, igualmente simples e profundas, emergem na sequência da anterior: o que faz de Vergílio Ferreira um dos autores mais representativos da recente literatura e reflexão filosófico-estética portuguesa hodierna? O que é que nele permite o pressentimento de que estamos perante uma voz universal? O que é que nele se adivinha de eterno?
Justamente a palavra. No início de Para Sempre, citando Saul Dias, escreve:
«A vida Inteira para dizer uma palavra!
Felizes os que chegam a dizer uma palavra!»
A Palavra, pois. Não se trata apenas de verbalizar um pensamento; trata-se, sobretudo, de fazer da Palavra a essência de um pensamento onde nada está a mais. Sentimento e pensamento poético conjugam-se, unificam-se, de modo a ascenderem ao seu intrínseco princípio da criação. Aliás, «O falar é bom. Mata a preocupação (...). O falar desoprime e revela a hipocrisia do sentir talvez um coral ou discurso de apresentação (...). – Eu disse que o sentir era hipócrita? Não é verdade. É o que está mais próximo do ser (...) Mas só as palavras o esclarecem, só nelas o sentir é verdade assumida».
Nesse universo inextricável das palavras, onde repousa, a um tempo, a grandeza e miséria do homem, como diria Hölderlin, resta-nos, mesmo nas mais nobres e dignas circunstâncias, amar o silêncio, o que ficou por dizer, o que se disse sem se ter pronunciado uma única letra.
Amar o silêncio por entre as vozes que tudo e nada insinuam: eis talvez uma das grandes mensagens impressa na escrita vergiliana, em tempo de abuso do verbo, do ilusionismo feito com as palavrs, já gastas pela inevitável massificação e consequente vacuidade da linguagem.
É a palavra dos Sofistas que renascem, com toda a vivacidade, dessa época retórica por que passou a Grécia Antiga, depois dos tempos memoriais do pensar primordial, nesse período conturbado do pensamento ocidental que se seguiu Sófocles e que antecedeu a filosofia socrático-platónica e que, contemporaneamente, floresce de uma forma ainda mais sub-reptícia, nominalista, onde os vocábulos remetem uns para as outros e não mais para o referencial ontológico que naturalmente suporta todo o nosso dizer.
Assim o lemos nas entrelinhas traçadas pela pena do escritor, e assim se lê também, de um modo explicito, no veredicto de Cabral do Nascimento, no poema intitulado «Amo o Silêncio», que tão claramente espelha o mais íntimo da sensível alma vergiliana: «Amo o silêncio e as vozes que insinuam / Meigas, ciciam musicais velados, / Fracas, serenas, pálidas, cansadas, / Doces palavras que no ar flutuam. / Amo o silêncio e a luz difusa ... E amo / A tarde cor de cinza, a chuva calma; / E o mar sem ondas, liso como a palma / Da minha mão aberta ... E, em cada ramo / Das árvores sem folhas, amo os verdes / Musgos pendentes, flácidos, em tiras ... / Assim, minha alma extática, suspiras, / Meu coração tranquilo, assim te perdes! / Rude fragor do mundo, sombra fria, / Passa de largo! Não me acordes, não! / Deixa correr a fonte da ilusão, / Enche-me a vida de melancolia» .
Isabel Rosete
terça-feira, 28 de setembro de 2010
Em homenagem a Vergílio Ferreira II
Escrevo na doçura de um beijo,
Na meiguice do olhar dos outros,
Nos comoventes espaços silenciosos
Das palavras ditas e não ditas.
Registo, em pormenor, o Tudo e o Nada
No seio do grito Universal do Pensamento
Que se move nos interstícios da Terra
Que rodopia, em torno do seu próprio
Círculo, sempre aberto, sempre redondo.
Entrevejo, ao longe, a invisibilidade dos seres
Encerrados nos seus casulos, emaranhados
Nas mais finas teias, caminhantes, suaves
E leves, de todos os caminhos paralelos
Que a tragicidade existencial chamam
E manifestam.
Vivo no Universo insólito de um mundo sonhado.
Da realidade terrena se afasta.
Ergue-se para os límpidos céus,
Para a harmonia musical das esferas divinas,
Sempre perfeitas,
Para a singeleza do cosmos dos Anjos,
Guardiões das Consciências apoquentadas,
Auditores dos pensamentos inconscientes,
Mensageiros dos insondáveis segredos
Das mentes altruístas, que aí estão
Na face eterna do Mistério do Mundo.
Isabel Rosete
Na meiguice do olhar dos outros,
Nos comoventes espaços silenciosos
Das palavras ditas e não ditas.
Registo, em pormenor, o Tudo e o Nada
No seio do grito Universal do Pensamento
Que se move nos interstícios da Terra
Que rodopia, em torno do seu próprio
Círculo, sempre aberto, sempre redondo.
Entrevejo, ao longe, a invisibilidade dos seres
Encerrados nos seus casulos, emaranhados
Nas mais finas teias, caminhantes, suaves
E leves, de todos os caminhos paralelos
Que a tragicidade existencial chamam
E manifestam.
Vivo no Universo insólito de um mundo sonhado.
Da realidade terrena se afasta.
Ergue-se para os límpidos céus,
Para a harmonia musical das esferas divinas,
Sempre perfeitas,
Para a singeleza do cosmos dos Anjos,
Guardiões das Consciências apoquentadas,
Auditores dos pensamentos inconscientes,
Mensageiros dos insondáveis segredos
Das mentes altruístas, que aí estão
Na face eterna do Mistério do Mundo.
Isabel Rosete
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